Curta de Eugène Green tem mais cinema do que a maioria dos longas
Nos 26 minutos de “Como Fernando Pessoa Salvou Portugal” existe mais cinema do que em quase todos os longas metragens que se tem visto nos últimos tempos. Há mais comédia do que em muita comédia. Há mais drama do que em muito drama.
Porém, acima de tudo, existem a poesia e a história. Da poesia se ocupa Pessoa, evidentemente. Da história, vários personagens escondidos e alguns nem tanto. O primeiro escondido é a chamada ditadura nacional, criada um ano antes e que seria um fabuloso obstáculo à entrada da CocaCola no território imperial. A proibição instituída no ano de 1927 só foi revogada após a Revolução dos Cravos...
O fato real é, no filme, representado pelo exorcismo a uma garrafa de Coca, numa das sequências mais humorísticas do cinema recente. Com o demônio exorcizado esvai-se não só a sensualidade que a frase publicitária (devida a Fernando Pessoa) sugeria, como o cartaz em que se acha estampada introduziam no país.
Vai-se ainda a ameaça imperialista (do império americano, claro, não do português). Reforça-se a ideia de país fora do tempo que Portugal por tantos anos cultivou. E de que Pessoa é, aliás, uma das maiores expressões: a imobilidade entranha-se em seus versos com tanta força quanto a Coca-Cola em nossas mentes.
“Primeiro estranha-se, depois entranha-se” —eis o slogan censurado pela ditadura. Pessoa passa incólume, do ponto de vista legal, pois o atribui a Álvaro de Campos, seu íntimo amigo que mora no exterior (e é, portanto, inatingível pelos braços da lei).
Álvaro, aliás, o atribui ao Escondido (ou seja, d. Sebastião, o rei desaparecido em AlkácerKibir). Quando o Escondido aparece, diz Álvaro, não é reconhecido. Mas de suas derrotas é que nasce a luz de Portugal.
A censura ao slogan é vitória ou derrota? Luz ou treva? É algo que inscreve Portugal no seu gosto de eternidade, pelo que tem de imobilismo. Ao mesmo tempo, pode ser aquilo que livra o império luso do imperialismo americano.
Estranho filme, esse, em que os personagens falam quase todo o tempo com os olhos voltados para a câmera (ou seja, para nós). Falam sempre com toda a franqueza do mundo. No entanto, de suas palavras, de seus gestos econômicos, os sentidos parecem brotar como o pássaro que, no início, atravessa do quadro de baixo para cima.
É a imagem de um Portugal inerte e ativo, espiritual e carnal, risonho e melancólico, tolo e brilhante que primeiro estranhamos e depois entranhamos.
O norte-americano Eugène Green parece ter encontrado sua pátria (desde “A Religiosa Portuguesa”, aliás).
(Impossível contornar a presença do absoluto Diogo Dória, como o ministro, no filme).
Cássio Starling Carlos
O comunismo de verdade, não o fantasma que o atual exército brasileiro de zumbis finge temer, está morto e enterrado faz tempo. “Verão”, do russo Kirill Serebrennikov, nos leva ao momento em que a juventude russa deu os sinais de que era hora de enterrar o cadáver.
O filme se passa em São Petersburgo de 1980 e reconstitui a amizade de duas personalidades da emergência do pop na União Soviética, cujas lideranças temiam o poder de contágio desse signo maior da decadência capitalista.
Mayk Naumenko, bardo à frente da banda Zoopark, seguiu as pegadas de Lou Reed e David Bowie para fortalecer sua crença na potência poética do rock. Sob sua influência, o mais jovem Viktor Tsoi criou o grupo Kino, fenômeno pop que tornou manifesta a incapacidade de o velho regime se sintonizar com os anseios das novas gerações. Ambos morreram no início dos anos 1990 e não conheceram o lado B da nova ordem repressiva que veio depois do colapso do comunismo russo.
Serebrennikov nos aproxima dos retratados sem exagerar na reverência. As imagens em preto e branco poderiam servir como retórica da evocação do passado, mas o filme não demora a desvirtuar essa premissa com passagens de abandono do realismo.
Com uma estética de videoclipe dos anos 1980, intervalos musicais interrompem o fluxo narrativo e inserem canções de Iggy Pop e Bowie no cinzento cotidiano soviético. Enquanto isso, um dos personagens faz comentários irônicos que tornam o filme uma reflexão sobre a rebeldia.
Outra vantagem das escolhas de Serebrennikov é evocar fatos e biografias de seus personagens sem restringi-los ao passado. Como o próprio diretor russo encontra-se desde agosto de 2017 em prisão domiciliar, acusado de desvio de recursos por um governo ao qual nunca prestou obediência, não é preciso esforço para reconhecer a alegoria.