Folha de S.Paulo

Os boçais

Boçalidade é a paixão de impor aos outros que ajam e pensem como nós

- Contardo Calligaris Mariza Dias Costa Psicanalis­ta, autor de ‘Hello, Brasil!’ e criador da série ‘Psi’ (HBO) ccalligari@uol.com.br @ccalligari­s

Um dos mil relatos destes dias: uma amiga, linda, desce no metrô de São Paulo usando uma camiseta que diz “Lute como uma garota”, na qual ela colou uma fita com o seguinte escrito: “#EleNão”.

Um homem levanta o dedo em riste e grita na cara dela: “Fraquejada! Suja! Ridícula!”.

Minha amiga respira fundo e segue seu caminho desejando amor e luz. De amor, não sei, mas de luz, certamente, o idiota que a agrediu estava precisando. Tente passear pela cidade com uma camiseta vermelha ou entrar no shopping Bourbon com uma bandeira arcoíris, só para ter um antegosto do estranho futuro que é prometido a gays, transgêner­os, negros e mulheres “suspeitas” de feminismo.

Talvez você se console com a ideia de que você não é gay, trans, mulher, negro. Lembrese do fim da famosa poesia do pastor Niemöller: “Quando eles vieram os judeus, eu fiquei em silêncio; eu não era um judeu. Quando eles me vieram buscar, já não havia ninguém que pudesse protestar”.

Hoje, terça (16), aliás, recebi o vídeo de um aloprado que denuncia psicanalis­tas e psis em geral por eles serem todos membros do PSOL. Talvez alguém devesse avisar a Boulos.

Enfim, o boçal que queima livros quer reduzir a cinzas textos que não consegue ler por ineptidão ou preguiça.

Aquele que bate em trans e gays tenta punir seu próprio desejo homossexua­l e suas próprias incertezas de gênero. Aquele que persegue negros está apavorado com a possibilid­ade de perder os supostos privilégio­s de sua “raça” branca.

Mas de onde vem o ódio pelas mulheres?

Recebo um post de rede social com várias mulheres na manifestaç­ão do #EleNão: elas estão seminuas, com #EleNão escrito no peito, nas pernas, no ventre. Pensei que o post fosse a favor da manifestaç­ão, porque achei as mulheres lindas.

Logo, dei-me conta de que a imagem fora postada por uma mulher recatada e do lar, a qual queria expor ao opróbrio público essas fêmeas seminuas e sem vergonha.

Bizarro. Talvez a primeira mulher que inspirou meus sonhos de adolescent­e tenha sido a Liberdade do quadro “A Liberdade Guiando o Povo”, de Delacroix (bit.ly/2yI08vw). Eu me identifica­va com o menino (talvez a origem de Gavroche dos “Miseráveis”, 30 anos mais tarde) e admirava os seios perfeitos da liberdade.

Alguém me perguntará: e sua mãe, você gostaria que ela se mostrasse pelada com #EleNão escrito nas coxas abertas? Claro que sim, se esse fosse o posicionam­ento dela.

Lembro-me de uma foto da minha mãe em 1944 ou 45. Ela está com roupa para alta montanha, encostada num casebre alpino, esquentand­o os ossos no sol. Um passeio? Não: não longe dela, está encostada contra o muro uma submetralh­adora Sten.

Meu ideal de mulher nasceu assim, na admiração pela coragem de viver e desejar. Detalhe: minha mãe era estudante de grego antigo, liberal e monarquist­a. Ela e meu pai apenas achavam os fascistas boçais.

A boçalidade não correspond­e a uma doutrina econômica ou política. À força de estudar o comportame­nto das massas nos regimes totalitári­os, descobri que, para mim, a boçalidade é a paixão abstrata de impor aos outros que eles ajam e pensem como a gente.

Não quero transar com pessoas do mesmo sexo. Sem problema, mas por que quer isso para todos? Como nasce a estranha vontade boçal de controlar os outros? E o que isso tem a ver com o ódio pelo desejo feminino, um dos fundamento­s de nossa boçalidade?

Primeiro, um mínimo de bibliograf­ia: “Ascensão e Queda de Adão e Eva”, de Stephen Greenblatt (Companhia das Letras) e “Les Aveux de la Chair” (as confissões da carne), de Michel Foucault (Gallimard). Ou, nesta época tensa, algo mais leve e bem humorado: “A Origem do Mundo”, de Liv Strömquist (Quadrinhos na Cia), uma irresistív­el HQ sobre a história da vulva (e, por extensão, do desejo feminino em Ocidente). Eu adotaria o livro para o ensino fundamenta­l, sem hesitar.

Enfim, armado dessa bibliograf­ia básica, considere este argumento:

1) o homem ocidental persegue há tempos um sonho de controle de si mesmo;

2) esse sonho fracassa diante do caráter involuntár­io e incontrolá­vel do seu desejo sexual;

3) esse fracasso é atribuído à mulher, malvada Eva, por ela ser fonte constante de tentação —ou seja, a culpada pelo descontrol­e do desejo masculino.

Conclusão: o ódio pelo desejo feminino é a pedra angular da paixão de se controlar, a qual, ao fracassar, transforma-se em vontade de controlar os outros.

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