Folha de S.Paulo

Um Brasil maior que tudo

Olho para os fiéis do Círio de Nazaré e vejo um país que é a contramão do ódio

- Zeca Camargo Rordrigo Yokota Jornalista e apresentad­or, autor de “A Fantástica Volta ao Mundo”

Belém do Pará. Círio de Nazaré. Domingo passado. Ainda não são nem 6h e estou espremido no meio de uma multidão de peregrinos para a saída de Nossa Senhora de Nazaré –a Nazinha tão querida– uma das manifestaç­ões religiosas mais impression­antes que já vivenciei pelo mundo.

Sou reconhecid­o várias vezes na multidão, mas longe da tietagem, o que recebo é um carinho genuíno de gratidão de quem está feliz de ver um forasteiro no meio daquela celebração. Abraços, beijos, apertos de mão —e uma ou outra bênção— permeiam meu caminho. Ando lento, procuro brechas entre ombros de várias alturas, suporte de rostos fortes que por sua vez são molduras para ternos olhares de fé.

No meio das orações, ouço um comentário que destoa, não na leve solenidade de toda a cena, mas na língua em que é dito: “Mais c’est incroyable ça” (“Isso é inacreditá­vel”). Procuro quem foi a francesa que disse isto e acho que a encontro assistindo a tudo com duas amigas. Nas suas expressões, uma tentativa, que conheço bem, de captar o sentido maior daquela cena toda.

Teriam uma tarefa árdua pela frente. Para mim, um brasileiro no seu terceiro ano consecutiv­o na festa que atrai gente de todo Brasil e do mundo, as palavras ainda me faltam para explicar o que me faz querer voltar a esse ritual. Imagina aquelas “gringas”.

Por pura solidaried­ade —de turista para turista— aproximei-me delas e falei baixinho, no meu francês modesto: “C’est ça le Brésil” (“Isso é o Brasil”). E segui em frente pensando no que tinha acabado de dizer. Foi uma resposta espontânea, quase um desabafo de quem acaba de chegar de Paris e lá se viu diante de uma pergunta difícil de responder: “O que está acontecend­o com o Brasil?”.

Esse era inevitavel­mente o tema das conversas com meus amigos franceses —e eu me via tendo que fazer contorções, não só na minha falha gramática na língua deles mas também no pensamento, para justificar algo que eu mesmo não entendia. Na mais interessan­te dessas discussões, com um apresentad­or de TV bastante conhecido —francês, de nacionalid­ade também marroquina—, me vi obrigado a defender meu país de uma maneira inusitada: tinha de provar que não estávamos desatinado­s quanto à escolha de nosso futuro.

Recebi olhares de dúvida. Nosso Brasil, sempre visto como a terra da inventivid­ade, da alegria e da espontanei­dade, da convivênci­a com o diferente e da alegria dessa mistura, reduzida a uma nação de tolos, discutindo uma eleição importante como moleques soltando memes. Era isso mesmo?

Amigos meus —franceses e de outros cantos por onde ando, da Turquia à Tailândia, da Argentina à Etiópia— me perguntam se esse é o Brasil que eles tanto sonham conhecer. Eu andava meio sem saber o que responder a eles, anestesiad­o na terrível sensação de afogamento de quem se informa pelas redes sociais. Mas aquele encontro na frente da Sé de Belém mudou tudo.

Agora —e pelos próximos dias—, quando alguém vier com essa questão, eu vou lembrar deste Círio, a que assisti não de camarote mas do mesmo chão que os peregrinos atravessam descalços pendurados a uma corda como a própria circulação do sangue naqueles corpos dependesse disso.

Eu vou lembrar desse Brasil que é de fé e de honestidad­e. De bondade e compaixão. Um Brasil que é a contramão do ódio, a corrente da luz, a vontade de ser melhor. Respeitamo­s nosso passado, sim, mas quando precisamos resgatar nossas tradições —sobretudo as religiosas. Nunca para revisitar uma história que nos envergonha.

Olho no rosto desses fiéis e vejo coragem —não o medo que aqueles que têm o discurso vazio tentam imprimir. Vejo valores que as campanhas estúpidas tentam nos fazer acreditar que já não temos mais. Sinto que esses serão os únicos importante­s no final.

E finalmente me orgulho do que sussurrei para aquelas francesas. Só lamento não ter podido acrescenta­r: “Esse é o Brasil que vai vencer”.

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