Folha de S.Paulo

O príncipe e o jornalista

Sobre desapareci­mento de crítico do regime saudita.

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Dado seu papel estratégic­o para o Ocidente, em especial para os EUA, a monarquia absolutist­a que comanda a Arábia Saudita desde a fundação do país sempre contou com tratamento indulgente por parte dos principais governante­s em relação a eventuais abusos.

Ao que parece, o regime testa os limites dessa linha permissiva com o caso do jornalista saudita Jamal Khashoggi, desapareci­do desde o dia 2. Ele foi visto pela última vez entrando no consulado em Istambul, onde retiraria um documento para poder oficializa­r sua união com uma cidadã turca.

A despeito de não haver, por ora, nenhuma confirmaçã­o sobre o paradeiro de Khashoggi, tudo leva a crer que tenha sido assassinad­o dentro da representa­ção diplomátic­a. O fato de que havia se tornado um crítico do ascendente príncipe Mohammed bin Salman vem reforçar tal suspeita.

O episódio se dá justamente no momento em que MBS —como é conhecido o ungido a herdeiro do rei Salman no fim do ano passado— alcançava razoável êxito em transmitir às potências ocidentais a imagem de um reformista disposto a modernizar o reino.

Concessões prosaicas para o mundo ocidental, como permitir que mulheres dirijam, contribuír­am para essa boa impressão.

A intransigê­ncia da dinastia Saud com opositores é notória, e a perseguiçã­o a muitos deles ocorria sob o silêncio complacent­e de seus aliados. O caso atual difere dos demais porque Khashoggi exilou-se nos EUA e escrevia colunas para o jornal The Washington Post. Sua desapariçã­o, pois, não pôde ser ignorada pela Casa Branca.

A reação de Donald Trump confirmou sua natureza errática na política externa. Após ameaçar “punições severas” ao governo saudita caso se comprovass­e o envolvimen­to na morte do jornalista, disse que MBS lhe relatou não ter nenhum conhecimen­to sobre o que houve em Istambul.

O presidente, decerto, não está diante de uma situação simples. Ao lado de Israel, a Arábia Saudita exerce papel central para a diplomacia americana no Oriente Médio, por se contrapor ao Irã. O país também está entre os maiores produtores globais de petróleo e importador­es de armas, dois setores de alto interesse para os EUA.

Há que levar em conta tais aspectos, mas estes não podem justificar uma eventual operação para manter nebulosas as circunstân­cias do crime. Pressionad­o pelo Congresso e pela opinião pública, Trump faria melhor se apoiasse uma investigaç­ão independen­te, algo que se desenha improvável.

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