Folha de S.Paulo

Há 40 ou 50 anos, até a comida causava horror

- Marcos Nogueira folha.com/cozinhabru­ta

Tem político querendo transforma­r o Brasil no país de “40 ou 50 anos atrás”. Eu tenho 48, vivi nessa época. Nasci sob a baioneta de Médici e fiz 15 anos no dia seguinte à morte de Tancredo Neves.

Posso dizer: era pavoroso. Não falo de repressão e tortura, mas de aspectos mundanos da vida. Os carros, de tão ruins, quebravam no meio da estrada. A poluição era bem pior —a palavra “ecologia” ainda não havia sido inventada. Os filmes estrangeir­os estreavam no cinema com meses, anos de atraso.

Até a comida causava horror. A macarronad­a de domingo era uma maçaroca de espaguete mole e grudento. Inclusive nos restaurant­es, que cobravam caro pela gororoba. A massa italiana, feita de trigo duro, chegou no começo dos anos 1990.

Carne macia, só filé mignon. Os bois brasileiro­s ficavam ao deus-dará, atacados por perebas sortidas. O bife era uma tristeza, duro e cheio de sebo amarelo de vaca velha.

Restaurant­e japonês? Não tinha. Melhor: tinha, mas só para japoneses e descendent­es. Fora da comunidade, o pessoal tinha nojo. É feio, mas é verdade. Peixe cru causava repugnânci­a.

Sem clientela “gaijin”, o comércio da Liberdade sequer se preocupava em usar nossa língua: placas e cardápios vinham todos em japonês. Reconhecía­mos os restaurant­es pelo cheiro de nabo ralado que escapava para a rua.

Falando em coisas que a gente não entende, os restaurant­es caros e metidos escreviam o cardápio —perdão, menu— em francês. Até a ervilha plebeia, enlatada e acinzentad­a virava “petit pois”. E havia duas versões da carta: uma delas, com os preços, para os cavalheiro­s; as damas não precisavam saber o valor dos pratos.

Num lugar assim, você provavelme­nte pediria um vinho. As opções eram de chorar. De um lado, garrafas francesas que custavam milhões (literalmen­te, pois a inflação era uma loucura); do outro, umas porcarias indescrití­veis fabricadas em solo pátrio.

Mas vamos de cerveja. Você nunca pedia pela marca. O garçom perguntava “Brahma ou Antarctica?” (eram cervejaria­s concorrent­es então), e a resposta-padrão era “a que estiver mais gelada”. Só que não: sempre estava quente. Quanto aos tipos disponívei­s, era fácil escolher. Tinha a cerveja clara e tinha a cerveja escura.

Na hora de pagar, nada de débito ou crédito com maquininha wireless. Cheque, só quem tinha dinheiro aplicado no banco. A geral carregava um bolo de notas na capanga —cruzamento da carteira com a bolsa, que os homens levavam junto ao peito, o cúmulo da elegância.

E era melhor ter dinheiro. Vai que o dono da birosca chamasse a polícia para resolver o impasse. Você não quer conhecer a polícia de 40 ou 50 anos atrás.

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