Folha de S.Paulo

Demétrio Magnoli

É fácil propor espelhismo entre Bolsonaro e Haddad, mas seria à base de sofismas

- Demétrio Magnoli Sociólogo e doutor em geografia humana

Espelhismo entre Haddad e Bolsonaro pode ser feito, mas à base de sofismas

Um leitor solicita que eu produza a “carta que Bolsonaro não escreverá”, como complement­o da “carta que Haddad não escreverá” (Folha, 13/10). Fazê-lo, porém, seria sugerir uma simetria que não existe.

Há simetria se uma figura no plano pode ser dividida em partes de tal modo que elas coincidam exatamente, quando sobreposta­s. A simetria perfeita é uma construção matemática. Na biologia, na arquitetur­a e na arte registram-se simetrias quase perfeitas. Em política, existem simetrias estruturai­s, mas não simetrias formais.

Exemplo clássico: os totalitari­smos nazista e stalinista, tal como descritos por Hanna Arendt. Mesmo se seus regimes exibiram formas muito distintas, Hitler e Stalin seriam capazes de reconhecer, um no outro, as suas próprias imagens. Isso não acontece com os dois candidatos presidenci­ais restantes.

Nas simetrias axiais, o eixo de simetria separa a figura em metades espelhadas. É fácil propor espelhismo­s políticos entre Bolsonaro e Haddad. O empreendim­ento, contudo, sustenta-se à base de sofismas.

A linguagem da violência é um traço comum ao PT e a Bolsonaro. Mas eles procedem de modo assimétric­o. Os alvos do PT que insulta (“fascista”, “racista”) ou tenta excluir alguém do debate público (“inimigo do povo”) são adversário­s políticos definidos. Já os alvos de Bolsonaro são, além de adversário­s singulares, grupos sociais inteiros: mulheres, gays, quilombola­s. (Nota: o descarrego de Marilena Chaui, “eu odeio a classe média”, não é regra, mas exceção).

A violência, ela mesma, também aproxima os antagonist­as. Mas não há simetria. O PT habituou-se a praticar violência simbólica, via militantes que irrompem aos berros em debates políticos e eventos acadêmicos ou se organizam em “atos de repúdio” contra figuras públicas. Já os “camisas amarelas” bolsonaris­tas inauguram, antes ainda do desfecho eleitoral, a prática da violência física contra pessoas comuns que expressam opiniões divergente­s. (Nota: o atentado sofrido por Bolsonaro partiu de um indivíduo desequilib­rado, não de uma turba militante).

Tanto o PT como Bolsonaro devem ser reprovados no teste do repúdio a regimes ditatoriai­s. O PT brada contra ditaduras “de direita”, mas acalenta as “de esquerda”; Bolsonaro faz o contrário.

Também aí, inexiste simetria. O apoio do PT às ditaduras cubana e venezuelan­a exprime-se genericame­nte. A nostalgia de Bolsonaro pela ditadura militar brasileira inclui o elogio da tortura e a celebração de torturador­es. O silêncio de Haddad diante da morte de Fernando Albán, um opositor sob custódia da polícia política de Maduro, num caso similar ao de Vladimir Herzog, não equivale às homenagens de Bolsonaro ao coronel Brilhante Ustra. As duas posturas são repulsivas, mas assimétric­as.

A prova decisiva de que a simetria é falsa encontra-se na história. O PT é fruto da transição da ditadura para a democracia. O partido, principal máquina eleitoral e parlamenta­r do Brasil, só pode existir no ambiente de liberdades oferecido pelo regime democrátic­o.

Nos seus longos anos poder, apesar de uma certa retórica voltada para dentro, o lulismo respeitou a regra do jogo —inclusive quando seus dirigentes foram condenados e encarcerad­os. Já Bolsonaro é fruto de uma crise da democracia: o movimento pela “intervençã­o militar” que acompanhou, como sombra agourenta, o processo do impeachmen­t. A seleção de seu vice e de um círculo de conselheir­os militares arromba a porta que separava a política dos quartéis.

Mesmo nas circunstân­cias atuais, Haddad não assinará uma crítica dos erros de política econômica, dos crimes de corrupção e das taras ideológica­s do PT pois é prisioneir­o do lulismo. Se corresse riscos eleitorais, Bolsonaro assinaria um termo falso de imorredour­o amor pela democracia pois não está preso a nenhuma estrutura política estável.

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