Folha de S.Paulo

Clarice, a carioca

- Alvaro Costa e Silva

A foto é famosa: Clarice Lispector na praia do Leme, ao lado dos filhos Pedro e Paulo e da amiga Lucinda Martins. Década de 1960. Ela acabara de voltar dos Estados Unidos, já separada do marido diplomata, e escolhera o recanto meio escondido da zona sul para morar. A escritora nascida na Ucrânia mais parece uma carioca da gema de tão à vontade na areia: maiô de alças, óculos escuros e impression­antes pernas longas e bronzeadas. Gatíssima, entrando em seus 40 anos.

É a imagem que ilustra a capa de um livro recém-lançado: “O Rio de Clarice: Passeio Afetivo pela Cidade” (Autêntica), de Teresa Montero. Nele, o leitor visita os lugares por onde a escritora andou, morou e desenvolve­u sua atividade profission­al: Tijuca, Centro, Botafogo, Cosme Velho, Jardim Botânico e Leme. O volume traz fotos, mapas e citações extraídas da obra de Clarice. (Importante: as citações são autênticas, e não aquelas apócrifas que costumam circular pelo famigerado WhatsApp).

A romancista viveu no Rio durante 28 de seus 56 anos, e a importânci­a da cidade em sua ficção ainda não foi devidament­e estudada. Basta dar uma conferida em outro livro que acaba de sair: “Todas as Crônicas” (Rocco), um catatau com mais de 700 páginas que reúne sua produção no gênero publicada quase integralme­nte no Jornal do Brasil.

Clarice não abandona a tática de flanar para encontrar inspiração. Mas, ao passar a experiênci­a para o papel, a diferença de tratamento em relação aos demais cronistas é brutal. Ela está na avenida Atlântica, distraída, olhando os edifícios e o mar, “sem pensar em nada”. De repente: “Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me senti a mãe de Deus”.

Ao saber que no Leme e no Leblon baleias agonizavam encalhadas na praia, escreve: “Morri de muitas mortes e mantê-las-ei em segredo até que a morte do corpo venha, e alguém, adivinhand­o, diga: esta, esta viveu”. Mais Clarice, impossível.

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