Folha de S.Paulo

Não Ingenuidad­e e resignação

É problemáti­ca a ideia de que, só por tirar o PT, tudo ‘dará certo’

- Lívia Serri Francoio José Francisco de Lima Gonçalves Economista-chefe do Banco Fator, professor do Departamen­to de Economia da FEA-USP e mestre e doutor em economia pela Unicamp

Jair Bolsonaro personific­a uma tentativa de negação do que foi o Brasil nos anos recentes. A insatisfaç­ão generaliza­da que começou a se manifestar em 2013 ganhou ímpeto com a eleição de 2014 e com seus desdobrame­ntos, desde o “terceiro turno” até o estelionat­o eleitoral.

O processo de impeachmen­t de Dilma Rousseff, coincidind­o com o auge político da Operação Lava Jato, criou e foi nutrido pela expectativ­a de que, sem Dilma e sem o PT, tudo “daria certo”.

Assim, a “ponte para o futuro” seria a agenda de um frágil, embora profission­al, governo que entregou apenas a mudança na legislação trabalhist­a, dado que o teto do gasto público está condenado a profundas alterações.

Ademais, a fragilidad­e política do governo Temer impôs, não o corte, senão que a expansão, do gasto público, consolidan­do a supremacia da Câmara sobre o Executivo que se iniciara no governo anterior.

A reforma da Previdênci­a, a maior bandeira da equipe econômica e abençoada pelos participan­tes do mercado financeiro e de outros segmentos relevantes, mal começou a tramitar e foi abortada, em processo que não permite contrafact­uais. O fato é que não passou.

Por outro lado, a queda da inflação, esgotados os efeitos dos choques, consolidad­a pela recessão, viabilizou a queda dos juros e alguma recuperaçã­o da renda real. Economia estagnada com inflação baixa. Reservas internacio­nais inéditas e conta corrente confortáve­l. A crise fiscal, finalmente, e a incerteza que inibe decisões de produzir e de investir configuram o coração do problema, o coração que precisa de espaço para respirar: a política.

Bolsonaro personific­a também, em plano mais profundo, uma tentativa de negação do que foi o Brasil desde os anos 1950. Não uma negação pela superação, mas pela tentativa explícita de volta ao passado. Aqui a crítica ao país da “meia entrada”, tão aceita pelo senso comum, tornou-se o desmonte do crédito subsidiado e da legislação trabalhist­a.

O mercado financeiro comprou as duas personific­ações. Desta vez, sem o PT, tudo “dará certo”. E aí começam os problemas. Pois Bolsonaro personific­a igualmente traços políticos, éticos e morais indissociá­veis entre si.

São eles o corporativ­ismo, o oportunism­o, a renúncia ao diálogo, o vazio de planos, os desencontr­os entre alegados princípios liberais e visíveis práticas personalis­tas, o espaço político sem a prática política.

O mercado financeiro não faz juízo de valor. Bolsonaro servirá se desempenha­r as duas primeiras personific­ações. A terceira, porém, deverá ser um dificultad­or de tal serventia.

Não há programa econômico, não há equipe. A eventual coordenaçã­o política adianta sinais contraditó­rios sobre temas caros ao mercado: privatizaç­ões, reforma tributária.

A renovação no Congresso implicará a desarticul­ação dos questionáv­eis processos decisórios criados nos últimos 30 anos. E seus novos membros ou não têm ideia do que seja aquele espaço ou não trazem tanta novidade. Ademais, haverá oposição. E, do outro lado da Esplanada, o Judiciário e seu transforma­do funcioname­nto.

Rupturas envolvem riscos e exigem competênci­a e convicção. Conversões tardias são frágeis.

Dr. House, icônico personagem da série de televisão, cunhou frases que se tornaram célebres. “People don’t change” (as pessoas não mudam) é uma delas. “Everybody lies” (todos mentem), outra.

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