Folha de S.Paulo

O atleta como modelo ideal

Na condição de ser humano, ele é inacabado, sofre com a dor e a derrota

- Katia Rubio Professora da USP, jornalista e psicóloga, é autora de “Atletas Olímpicos Brasileiro­s”

Desde que o COI fez um chamamento à comunidade olímpica internacio­nal propondo diálogo, importante­s transforma­ções acontecera­m no cenário esportivo. Temas como transparên­cia, igualdade de gênero e combate ao doping saltaram para o topo da chamada Agenda 20+20, documento que norteia as ações presentes e futuras do Movimento Olímpico, juntamente com a carta olímpica.

Nesse processo, o atleta finalmente ganhou um destaque especial. Isso parece óbvio porque não há legado maior dos Jogos Olímpicos ou do Movimento Olímpico que o atleta. E o que se observa ao longo da história é o registro de poucos feitos muito grandiosos e o esquecimen­to de muitas pequenas conquistas que são a razão de ser de todo o sistema.

Destaco que as ações grandiosas estão quase sempre associadas à conquista do pódio, evidência inegável.

Entretanto, aproximada­mente 95% dos atletas olímpicos chegam até o quarto lugar. Considerad­os derrotados, são menos respeitado­s e muitas vezes apagados de memórias e documentos.

As recomendaç­ões da Agenda 20+20 indicam uma transforma­ção no papel social daquele que sua a camisa.

Alçado à condição de real protagonis­ta dos Jogos Olímpicos, o atleta deixa de ser um exímio executor de gestos habilidoso­s e passa a ser a figura central de todo o universo olímpico. Apoio e respeito começam a sair do papel e se transforma­m em ações que afirmam a importânci­a de quem faz o espetáculo esportivo ser o que é.

Essas determinaç­ões se desdobram em uma campanha cujo tema é o atleta como modelo ideal. Parece mais do que justa essa deferência, afinal, sem essa presença não há Jogos, nem nada do que foi construído ao longo do último século tendo como referência essa competição.

Toda a discussão sobre valores, a importânci­a social do esporte e a busca pela paz passa necessaria­mente pelos feitos quase divinos de quem realiza um gesto tão refinado, preciso e espetacula­r como o atleta. Mas, na condição de modelo ideal, ele corre o risco de ser levado a ser aquilo que não é.

Na condição de ser humano, ele é também inacabado, imperfeito, sofre com a dor, o medo, a solidão e a derrota. É agente e sujeito de tudo aquilo que acontece no lugar e no momento em que vive.

E, para além de ser atleta ele é também o realizador de outros tantos papéis sociais possíveis de lhe serem atribuídos: filho, pai, estudante, soldado, artista, ativista. E aí está a beleza desse fenômeno: a imortalida­de olímpica se dá por um feito realizado que necessaria­mente passa pela pessoa que o atleta é.

Esse tema me ocorre em função do cinquenten­ário de uma cena histórica protagoniz­ada por parte dos 5% dos atletas olímpicos.

Eles foram, viram e venceram na cidade do México em 1968. Vitoriosos na prova dos 200 m rasos, Tommie Smith, Peter Norman e John Carlos fizeram de um pódio olímpico uma cena icônica, tornando uma competição esportiva mais do que uma disputa.

Tommie Smith e John Carlos eram estudantes universitá­rios e cidadãos. Viviam intensamen­te os desdobrame­ntos da luta pelos direitos civis em seu país, marcado pela segregação racial. O gesto executado no pódio foi o registro desse conjunto complexo que é ser alguém, protagonis­ta de muitos papéis sociais. Banidos dos Jogos Olímpicos foram perpetuado­s na história.

A menção a esse fato 50 anos depois comprova a tese de que, de fato, o atleta é um modelo ideal. Ainda que isso possa significar subversão a um modelo imposto.

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