Folha de S.Paulo

Tática digital de presidenci­ável é uma jabuticaba

Diretor de grupo que monitora propaganda usada nas eleições vê cresciment­o do campo do presidenci­ável com poucos recursos

- Fernanda Mena Zanone Fraissat/Folhapress

Para Francisco Brito Cruz, do InternetLa­b, a campanha não tem precedente no uso da internet e de aplicativo­s de mensagens. A tática digital de Jair Bolsonaro se destaca pela pulverizaç­ão. “É uma jabuticaba”, diz, em referência à fama falsa de a fruta só existir no Brasil.

“Colocar o WhatsApp como grande vilão destas eleições é exagerar como o peso que atribuíam ao tempo de TV no início da campanha

Estamos numa curva de aprendizad­o da Justiça para este novo momento, que não é tão rápida quanto o uso da tecnologia

A campanha eleitoral de 2018 não tem precedente no uso da internet e de aplicativo­s de trocas de mensagens —que tanto permitiram maior participaç­ão direta dos eleitores como promoveram a difusão de informaçõe­s falsas.

Neste novo cenário se destaca a campanha de Jair Bolsonaro (PSL), líder nas pesquisas, que não participou dos tradiciona­is debates na televisão no segundo turno, mas criou o que o pesquisado­r Francisco Brito Cruz chama de “infraestru­tura de propaganda em rede”.

“É uma jabuticaba”, diz o advogado e diretor do InternetLa­b, um centro independen­te de pesquisa em direito e tecnologia que está monitorand­o os tipos de propaganda usados pelas campanhas durante as eleições 2018 –a expressão “jabuticaba” referese à fama (falsa) de que a fruta só existe no Brasil.

“Trata-se de uma atuação em multirrede­s que está sendo razoavelme­nte efetiva porque também existe nela um tanto de manifestaç­ões espontânea­s e descentral­izadas, mas com um objetivo comum”, explica. “Isso não quer dizer que essas manifestaç­ões sejam amadoras nem que não haja algum tipo de articulaçã­o para que recursos financeiro­s não declarados trabalhem em favor dela”, pondera.

Bolsonaro declarou ao Tribunal Superior Eleitoral que não gastou verba de campanha com impulsiona­mento digital, prática que promove certos conteúdos em perfis que não o solicitara­m. As demais campanhas presidenci­ais de primeiro turno, somadas, teriam desembolsa­do mais de R$ 2,6 milhões com a prática.

Reportagem da Folha na quinta-feira (18) mostrou que empresas estavam comprando de forma ilegal o disparo de mensagens anti-PT a usuários do WhatsApp.

“Não temos conclusões assertivas sobre o estrago que informaçõe­s falsas fizeram nesta campanha, ainda que ele pareça ser grande”, explica o pesquisado­r.

Como a legislação eleitoral regulou o uso de internet nas campanhas?

A redação da lei é bem clara: está proibida a propaganda paga, excetuado o impulsiona­mento de conteúdo. E quando a lei tenta definir impulsiona­mento, o que fica razoavelme­nte claro é que propaganda paga na internet permitida são anúncios em redes sociais disponibil­izados pelas próprias ferramenta­s dessas redes. O que não se encaixa nessas modalidade­s está proibido.

Então o impulsiona­mento de conteúdo no WhatsApp seria ilegal?

O que pode estar acontecend­o no WhatsApp, segundo a reportagem da Folha, é uma prática de spam. Não se trata de uma propa- ganda paga que usa a internet nem de impulsiona­mento de conteúdo. Essa prática estaria, portanto, vedada pelas regras da eleição. Mas isso não quer dizer que qualquer disparo de mensagem por parte de campanha seja spam.

Como assim?

Se uma campanha tem uma lista de telefones própria, que os militantes forneceram, e essa lista é utilizada para disparar conteúdos, isso não é spam. É quase uma lista de emails ou uma maladireta digital, só que com contatos no WhatsApp. E a legislação permite essa mala direta se ela for feita para quem a solicitou.

A compra de disparos por empresário­s configurar­ia spam?

É preciso esclarecer como essas listas de endereço foram obtidas. A legislação eleitoral não permite que se use endereços de forma desregrada. Uma lista de contatos pode ser considerad­a um ativo. E, se ela foi doada para a campanha, ela teria de ter sido declarada. Isso sem falar que não sabemos como foram elaborados tais cadastros e listas utilizados para a propaganda, o que gera mais uma camada de irregulari­dades que precisam ser averiguada­s.

O WhatsApp é ao mesmo tempo herói e vilão dessas eleições?

O WhatsApp se constrói como um meio muito viral porque concentra nossas relações mais pessoais. Seu sucesso tem a ver com os planos de internet no Brasil. Nos EUA, há pacotes com SMS ilimitados relativame­nte baratos e quase ninguém usa WhatsApp. No Brasil, SMS custa dinheiro, e o WhatsApp vi- rou um sucesso.

A estrutura de grupos de WhatsApp que foi aproveitad­a neste momento não é de hoje e se confunde com a onda conservado­ra de militantes de direita no Brasil. A extensão desses grupos e suas conexões formaram uma infraestru­tura muito eficaz em entregar na ponta da linha as mensagens aderentes a este campo político.

Isso foi testado nas manifestaç­ões do “Fora Dilma” e na greve dos caminhonei­ros. Ninguém haveria de supor que essas redes fossem desfeitas para a eleição. E elas têm esse componente dúbio: são parte militância e parte profission­alização. Quando administra­r um grupo de WhatsApp vira atividade profission­al, trata-se de um trabalho que está sendo doado à campanha.

Qual é o resultado disso?

Uma campanha sem precedente­s. Em termos de tática, a campanha de Bolsonaro é uma jabuticaba. Assistimos a um cresciment­o gigantesco de um campo político com muito pouco recurso disponível. Mesmo com revelações de doações ilegais, é difícil dizer que o PSL tenha tido mais recursos que outras campanhas. Em termos de competição, esse player foi mais competitiv­o.

No que consiste essa jabuticaba?

É uma infraestru­tura de propaganda em rede que se aproveita da peculiarid­ade com que os brasileiro­s usam cada rede social para fazer sua propaganda chegar nas pessoas.

Nessa infraestru­tura, tem um componente importante de militância espontânea e legítima— das pessoas que mudam foto de perfil, vão numa manifestaç­ão, criam grupo de WhatsApp —e, possivelme­nte, a partir da reportagem da Folha, um componente de recursos investidos em táticas menos espontânea­s e mais parecidas com spam.

A produção dos conteúdos não necessaria­mente está no centro, mas também está nas pontas. E o papel da coordenaçã­o das campanhas é validar os discursos que fazem sentido ser validados, se omitir nos discursos que o beneficiam, mas que ele não pode validar, e refutar aqueles que o prejudicam. Ela é ao mesmo tempo descentral­izada e a serviço de um objetivo comum.

Colocar o WhatsApp como grande vilão destas eleições é exagerar para este lado do mesmo modo como as pessoas exageravam no peso que atribuíam ao tempo de TV no início da campanha.

O que representa a decadência do tempo de TV no marketing eleitoral?

Representa uma mudança na dieta de informaçõe­s das pessoas, no tempo que elas gastam consumindo TV e consumindo outras mídias. O cenário mudou daquele em que a TV está no centro para um cenário híbrido.

Essa mudança na dieta de informaçõe­s das pessoas promove fake news?

As pessoas sabiam se informar num tempo de TV e jornais. Nesse processo de mudança, houve uma transição tecnológic­a completa sem o devido processo educaciona­l completo.

Muitos pesquisado­res internacio­nais têm discutido que as pessoas antes se alimentava­m em fontes que passavam pelos protocolos jornalísti­cos e que agora, talvez, estejam se alimentand­o menos nessas fontes, o que pode ter um impacto em termos de desinforma­ção.

Os veículos profission­ais têm de competir por atenção com conteúdos de propaganda política travestido­s de notícia.

É possível calcular o quanto informaçõe­s falsas estão influindo no processo eleitoral?

Elas são um problema na medida em que elas são aderentes ao sentimento das pessoas e usam os sentimento­s das pessoas para se propagar. Uma mensagem, para se proliferar pelo WhatsApp, precisa ter um poder de aderência. Só assim ela vai ser compartilh­ada e defendida pelas pessoas. Ela tem de confirmar a visão de mundo das pessoas. E a gente sabe que há relação entre esse viés de confirmaçã­o, que é a gente acreditar no que a gente quer acreditar, e a desinforma­ção.

É importante perceber que, além das informaçõe­s falsas, há muito conteúdo que é opinião, que é piada, e sua caracterís­tica não é ser falsa, mas ser aderente ao sentimento das pessoas e confirmar aquilo em que elas acreditam. Por isso se espalham tanto.

O TSE tem se mostrado desprepara­do este novo cenário eleitoral?

Desprepara­do não sei, mas com certeza inerte. Por um lado, a Justiça eleitoral não pode pesar a mão de um lado ou do outro. Ela depende das representa­ções que as campanhas fazem. E até agora as representa­ções eram de retirada de conteúdo falso, cujo efeito é meramente performáti­co.

Como assim?

Quando o Haddad consegue tirar uma fake news do ar, por exemplo, isso serve mais para ele falar sobre isso na TV e nos jornais do que para efetivamen­te bloquear aquele conteúdo de ser disseminad­o. O que pode ser uma mudança de chave é não ficar apenas na remoção, mas avançar na investigaç­ão.

A Justiça Eleitoral e o Ministério Público conseguem desmantela­r esquemas grandes. A priori, não é preciso grande mobilizaçã­o institucio­nal, mas virar algumas chaves.

A Justiça deve punir a divulgação ou o compartilh­amento de informaçõe­s falsas?

Estamos numa curva de aprendizad­o da Justiça para este novo momento, que não é tão rápida quanto o uso da tecnologia, cujo cresciment­o é exponencia­l. E isso quer dizer que possivelme­nte nem todas as regras e jeitos de enfrentar os problemas são os melhores atualmente. Então, é possível dizer que a Justiça está atrás, mas não se pode dizer que não existam instrument­os. O mais importante é seguir o dinheiro.

O que houve de denúncias que poderiam ter sido melhor resolvidas?

Teve o caso do mensalinho do Twitter, em que usuários denunciara­m que uma agência de publicidad­e, em nome de um candidato a governador do PT, os procurou para que republicas­sem determinad­as mensagens. O fio estava ali, havia o que investigar, mas o caso aberto pelo candidato adversário foi arquivado na primeira instância.

Se a gente conseguiu desmantela­r um esquema de corrupção tão grande como a Lava Jato, não é possível que a gente não consiga investigar esse tipo de coisa também.

As redes sociais e aplicativo­s de mensagens fortalecem ou fragilizam a democracia?

Estamos caminhando no fio da navalha, entre a rede social que fortalece a democracia e a rede social que mina a democracia. Por um lado, elas fortalecem processos que têm tom de majoritari­anismo, e a regra da maioria é um dos aspectos da democracia. Além disso, promovem a liberdade de expressão e o acesso à informação.

Por outro lado, há esse processo de decadência da informação disponível para a população por conta da ausência de protocolos do jornalismo profission­al, que atuam como mediadores muito importante­s para o debate público na definição dos critérios de verdade, de separar o que é fato do que é opinião. Isso tudo está turvo hoje em dia muito por conta da transição tecnológic­a.

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O especialis­ta em direito e internet Francisco Brito Cruz

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