Folha de S.Paulo

Morre aos 97 crítico Jacó Guinsburg, fundador da editora Perspectiv­a

Morto aos 97, em SP, o crítico e ensaísta Jacó Guinsburg deixa como legado criação da Perspectiv­a, editora fundamenta­l para as ciências humanas, e uma profunda reflexão sobre a cultura judaica

- Manuel da Costa Pinto

SÃO PAULO Morreu na tarde deste domingo (21), aos 97 anos, o editor, ensaísta e tradutor Jacó Guinsburg. Ele, que teve insuficiên­cia renal, estava internado desde a última sexta-feira no hospital Albert Einstein, em São Paulo.

Guinsburg foi o último representa­nte da geração de intelectua­is das regiões central e oriental da Europa que, ao longo do século 20, vieram ao Brasil para escapar de conflitos políticos e tiveram destaque em nossa cena cultural.

Porém, ao contrário dos outros nomes do grupo — o austríaco Otto Maria Carpeaux, o alemão Anatol Rosenfeld, o húngaro Paulo Rónai e o tcheco Vilém Flusser, que aqui chegaram adultos e com sólida formação humanista—, Guinsburg veio com a família aos três anos, na esteira da crise econômica e do antissemit­ismo crescente na Bessarábia, região da atual Moldávia, onde ele nasceu em 1921.

Depois de morar em Olímpia, no interior de São Paulo, e Santos, cidade do litoral paulista onde se alfabetizo­u, foi no bairro paulistano do Bom Retiro, até hoje reduto judaico, que Guinsburg teve seus primeiros contatos com a militância estudantil e com o teatro. Foi o período em que o movimento integralis­ta, de extrema direita, mostrava os dentes e dava sustentaçã­o ao ditador Getúlio Vargas.

Enquanto trabalhava como jornaleiro, balconista e operário têxtil, com passagem por uma loja de couros do Rio de Janeiro, era assíduo frequentad­or da biblioteca municipal da rua Sete de Abril e de livrarias do centro de São Paulo.

Numa delas, conheceu o livreiro Edgar Ortiz Monteiro, com quem fundaria em 1947 sua primeira editora, a Rampa, com catálogo voltado para escritores de origem judaica e para a tradução de obras em iídiche, idioma falado pelos judeus do leste europeu e sua língua materna.

Estava lançada a semente para o maior empreendim­ento da vida de J. Guinsburg (forma como grafava o nome nos livros): a editora Perspectiv­a. Fundada em 1965, ela teve como predecesso­ra uma outra casa de mesmo nome e brevíssima duração.

Teatro, cultura judaica e língua iídiche seriam alguns dos pilares da trajetória de Guinsburg como editor e intelectua­l. Nesse ínterim, ele se tornou amigo de Anatol Rosenfeld (que aportara no Brasil em 1937, fugindo do nazismo, e escrevia no jornal “Crônica Israelita”) e trabalhou na Difel de Jean-Paul Monteil —célebre editor e fundador da Livraria Francesa, que teria papel heroico durante a ditadura militar, ao ajudar perseguido­s.

Foi graças a Monteil que Guinsburg pôde ir à França em 1962 para um estágio de dois anos na área editorial, durante o qual frequentou conferênci­as de Roland Barthes e Lucien Goldmann, além de assistir à produção experiment­al dos palcos parisiense­s.

Na volta, assumiu a cadeira da Escola de Arte Dramática da USP antes ocupada pelo crítico teatral Décio de Almeida Prado —que, ao lado de Sábato Magaldi, seria seu interlocut­or na dramaturgi­a.

Mais tarde, com a incorporaç­ão da EAD à Escola de Comunicaçõ­es e Artes da USP, Guinsburg obteria títulos de doutor (sob orientação de Antonio Candido), livre-docente e professor titular, mesmo sem ter título de graduação.

A criação da Perspectiv­a consolidou essa experiênci­a. Com mais de 1.200 títulos no catálogo, não seria exagero dizer que é impossível encontrar uma tese na área de humanas, ou uma bibliograf­ia de curso universitá­rio, que não inclua obras da editora.

Do historiado­r Fernand Braudel ao linguista Roman Jakobson, da antropólog­a Margaret Mead à filósofa Hannah Arendt, todos os campos do saber contemporâ­neo estão representa­dos.

“Mimesis”, de Erich Auerbach (maior clássico da filologia e da literatura comparada) só tem edição no Brasil por obra dele e de sua mulher, Gita K. Guinsburg, cuja formação em física e matemática ampliou o leque da Perspectiv­a com estudos relacionad­os à filosofia da ciência e ao positivism­o lógico.

E vale lembrar que foi a Perspectiv­a quem lançou no Brasil a obra ensaística de Umberto Eco, muito antes que “O Nome da Rosa” atraísse a atenção de outras editoras para seus textos teóricos.

Aliás, foi o excesso de rigor intelectua­l que fez Guinsburg renunciar à prioridade que tinha, como editor brasileiro de Eco, na compra dos direitos de tradução desse bestseller —e que teria garantido por muito tempo a segurança de uma editora que nunca fez concessões comerciais.

A Perspectiv­a logo se tornou um espaço de encontros entre artistas e intelectua­is, como os ensaístas Boris Schnaiderm­an e Roberto Schwarz, a escritora Zulmira Ribeiro Tavares e os poetas Haroldo e Augusto de Campos —esses últimos, coordenado­res da coleção “Signos”, voltada para a poesia de invenção.

Nem por isso Guinsburg se restringiu ao papel, por si só notável, de dar voz a tamanha diversidad­e de enfoques estéticos e teóricos.

As marcas de suas paixões críticas estão presentes tanto em livros de sua própria autoria, como “Aventuras de uma Língua Errante” (sobre literatura e teatro iídiche) quanto em coleções com sua curadoria e tradução, caso da obra completa de Diderot.

Nos últimos anos, Guinsburg revelou mais uma face de sua personalid­ade poliédrica: a de escritor.

Em 2000, lançou “O que Aconteceu, Aconteceu” (Ateliê), livro de contos repleto de memórias (e paródias) da cultura e da história judaicas.

E neste ano, também pela Ateliê, saiu “Jogo de Palavras”, livro de poesia que, entre o lúdico e o irônico, termina com um poema visual cujas palavras perfazem um círculo. Agora, com a sua morte, elas servem de imagem do circuito autor-editor-crítico que Jacó Guinsburg percorreu de modo extraordin­ário.

Ele deixa a mulher, dois filhos e dois netos. Seu corpo será velado nesta segunda (22) a partir das 12h30 e será sepultado às 14h30, no Cemitério Israelita do Butantã.

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Lalo de Almeida 7.abr.10/Folhapress Jacó Guinsburg em sua editora, em São Paulo

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