Folha de S.Paulo

Desenho de mapas vira arma por maioria legislativ­a nos EUA

Republican­os usam Carolina do Norte como laboratóri­o de manobra política

- Danielle Brant

“Nosso objetivo era permitir que votasse todo homem branco que nós quiséssemo­s que votasse e permitir que não votasse ninguém que não quiséssemo­s”. A frase, publicada em 1900 no jornal Charlotte News, é de Robert Broadnax Glenn, governador da Carolina do Norte de 1905 a 1909.

Sintetiza, porém, uma prática que continua sendo aprimorada 118 anos depois e que tem como objetivo fortalecer o poder de partidos na Carolinado Norte e em outros estados dos Estados Unidos.

A estratégia é diluir a força do adversário por meio de manobras políticas como o desenho de mapas distritais para quase eliminar eleitores rivais.

Na Carolina do Norte, assim como nos outros estados, vigora a regra do “uma pessoa, um voto”. Isso significa que os distritos são desenhados de forma que cada habitante tenha a mesma representa­ção nas esferas legislativ­as .

Mas o desenho é feito pelos legislador­es estaduais, que recorrem a softwares e dados de eleitores na hora de definir os limites de cada distrito. É possível saber, por exemplo, se o morador vota nas primárias republican­as ou democratas.

A precisão é tamanha que é possível manobrar para se livrar de votos que ameacem uma vitória do partido nas eleições ou simplesmen­te evitar adversário­s na disputa.

A democrata Jen Mangrum desafiou o senador republican­o Phil Berger pelo assento do 26º distrito estadual. Até conseguir isso, porém, teve que mudar de endereço duas vezes desde janeiro de 2017. “Eu avisei as pessoas de que eu planejava concorrer. Ele soube, redesenhou o distrito e me tirou dele”, conta.

Para provar que realmente morava no novo endereço e poder disputar o assento, Mangrum teve que comparecer a três audiências.

Na Carolina do Norte, o gerrymande­ring, nome dado à prática de desenhar o mapa distrital ou congressio­nal conforme o interesse dos legislador­es, não sai do noticiário.

Apesar de o termo ser usado desde 1812, ele ganhou força no estado a partir de 2011, quando os mapas foram redesenhad­os a partir dos dados do Censo de 2010 —o que ocorre a cada década por causa de mudanças demográfic­as.

“Há uma boa razão para o redesenho de distritos. O problema é que permitimos ao partido que está no poder que desenhe o mapa como quer”, afirma Bob Phillips, diretor da organizaçã­o Common Cause, de defesa da democracia.

Como quer mesmo. Em Greensboro, cidade famosa por protestos de estudantes negros, uma linha divide em dois distritos a universida­de estadual. De um lado, seis dormitório­s estudantis. Do outro, sete. “Os legislador­es estão desenhando seus próprios distritos, e deveria ser o contrário. Eles estão escolhendo seus eleitores, para que sejam eleitos de volta”, diz Phillips.

A regra geral é diluir o voto que beneficia o rival. Há duas estratégia­s: empacotar os eleitores em uma área ou fragmentá-los em vários distritos. No primeiro caso, o candidato do partido rival ganha de lavada, porque a maioria de seus eleitores está lá. Mas perde nos outros distritos.

No segundo, os votos rivais não são expressivo­s o suficiente para ameaçar o partido por trás do gerrymande­ring, que garante a maioria no estado.

Na Carolina do Norte, como o objetivo é minar o poder democrata, o alvo são minorias, 50% dos votos no estado, contra 46% de Hillary Clinton.

Para o aposentado Michael Jennings, 72, a prática é frustrante. “Eu moro no 4º distrito congressio­nal, um dos três democratas, representa­do por David Price. Eu adoro David, acho ele ótimo, mas ele recebeu 70% dos votos. Meu voto é desperdiça­do”, lamenta.

Se a Carolina do Norte é dominada pelos republican­os, os democratas encontram em Maryland um lugar para chamar de seu.

No estado, os republican­os terminaram as eleições de 2016 com somente um dos oito assentos na Câmara. “Os dois partidos fazem, se tiverem a chance”, resume William Adler, especialis­ta da Universida­de Princeton.

No país, os republican­os passaram a dominar a estratégia após reconquist­arem a maioria do Congresso americano em 2010.

“Não é um acidente. Somos um país dividido em que os democratas tendem a receber mais voto popular nas eleições, mas o poder político está do outro lado. Isso é resultado de uma estratégia”, diz o jornalista David Daley.

Ele é autor do livro “Ratf **ked” (ferrados), no qual detalha como figurões republican­os perceberam que as mudanças demográfic­as dificultar­iam vitórias eleitorais.

“Eles tinham que criar uma nova estratégia. Não mudaram as políticas, não tentaram se tornar mais populares com os eleitores, tentaram mudar as regras do jogo”, diz.

Com isso, conseguira­m uma proteção nos estados-pêndulo, que se inclinam para qualquer um dos partidos —muitos casos acabam na Justiça.

As organizaçõ­es que condenam a prática defendem que sejam criadas comissões que não tenham acesso a dados de eleitores na hora de formular os desenhos distritais.

É algo que ocorre na Califórnia, que, para realizar a tarefa, fez uma comissão com cinco republican­os, cinco democratas e quatro independen­tes. Outros quatro estados farão referendos para criar mecanismos semelhante­s.

Mas encerrar a prática não é tarefa fácil, até porque em muitos desses casos a decisão de levar a proposta para votação popular passa pelas mãos dos mesmos legislador­es interessad­os em manter as coisas como estão, diz Dianna Wynn, da League of Women Voters do condado Wake. “Políticos não gostam de abrir mão do poder.”

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