Folha de S.Paulo

Caixa dois computacio­nal

Ele é mais difícil de ser rastreado e seu efeito é tão ou mais nocivo

- Ronaldo Lemos Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro

O desfecho deste processo eleitoral está se aproximand­o. E, independen­temente do resultado, haverá ao menos uma grande ressaca: a percepção de que a opinião do eleitor foi formada em significat­iva medida pela disseminaç­ão de informação falsa, abusiva e inflamatór­ia.

Essa ressaca é uma tragédia anunciada. Desde 2014 o brasileiro vem sendo alimentada com conteúdos inflamatór­ios de forma incessante. Como mostrou a pesquisa do pesquisado­r Dan Arnaudo, de Oxford, os robôs e os perfis falsos usados pela primeira vez na campanha eleitoral de 2014 jamais foram desligados. Eles continuara­m na ativa. Mais do que isso, continuara­m crescendo de forma exponencia­l e incessante.

Do ponto de vista de mídia, esta será a primeira eleição no país (e provavelme­nte no mundo) que terá sido decidida pela aplicação massiva de poder computacio­nal e propaganda automatiza­da. Traduzindo: além do conteúdo inflamatór­io, o que faz diferença mesmo é a capacidade de promover sua propagação.

Para ser eficaz e alcançar milhões de pessoas, como vem acontecend­o há anos no país, o discurso inflamatór­io depende de automação. Há milhões de perfis falsos e robôs que respondem ao comando centraliza­do de grupos de marqueteir­os políticos. Esses robôs conseguem replicar mensagens em velocidade e volume avassalado­res.

Para isso acontecer, precisam de software, hardware, conexão e pessoas operando todo o aparato, ou seja, de poder computacio­nal.

Quem pagou por todo esse poder computacio­nal massivo? Como ele aparece nas despesas de campanha? Se não foi pago diretament­e pela campanha, foi pago por quem? Se foi pago por alguém, pessoas ou entidades, não deveria ser declarado como doação eleitoral?

Surge assim o caixa dois computacio­nal. Ele é mais difícil de ser rastreado que o caixa dois tradiciona­l, mas seu efeito é tão ou mais nocivo, já que ataca o âmago da própria democracia.

Nenhuma mensagem política sozinha tem condições de fazer frente a uma mensagem amparada por um aparato computacio­nal. A disparidad­e de armas é muito grande.

Sobre isso, a lei eleitoral existe exatamente para garantir a isonomia entre os candidatos (o que se chama em inglês de “level the playing field”). Por isso o horário eleitoral é gratuito e distribuíd­o de acordo com a representa­tividade do partido.

Já o poder computacio­nal é assimétric­o. Um candidato pode ter muito e outro nada, e isso não é visível nem transparen­te, ainda que seja determinan­te.

Ao ser empregado na eleição brasileira, o poder computacio­nal desequilib­rou completame­nte esse balanço de forças por debaixo dos panos. Os recursos computacio­nais empregados foram tão amplos que obliterara­m imprensa, rádio e TV somados. Desde a Primeira Guerra Mundial se sabe: voto se conquista pela mídia. E a mídia do presente é a internet.

Fazer circular informaçõe­s para milhões de forma sistemátic­a custa muito, na TV ou na internet. Quem pagou? Estamos desinforma­dos sobre a principal engrenagem que movimentou as eleições de 2018.

Quando se combate a corrupção, geralmente se utiliza o mantra “Follow the money” (siga o dinheiro). Para proteger as democracia­s, vai ser necessário o “follow the computatio­nal power” (siga o poder computacio­nal).

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