Na mira de Bolsonaro, lei afrouxa, e 6 armas são vendidas por hora a civis
Favorito à Presidência, Jair Bolsonaro promete revogar estatuto do desarmamento, lei de 2003
Aprovado em 2003 e afrouxado nos últimos anos por meio de decretos e portarias, o Estatuto do Desarmamento corre o risco de ser desmantelado a partir de 2019, no que depender do presidenciável Jair Bolsonaro (PSL).
A lei federal regula o acesso a armas e restringiu o porte e a posse em todo o país. Apesar dos limites, cerca de seis armas são vendidas por hora no mercado civil, segundo dados do Exército obtidos via Lei de Acesso à Informação pelo Instituto Sou da Paz. Neste ano, até 22 de agosto, haviam sido vendidas 34.731 armas.
“O brasileiro está buscando mais armas”, diz o diretor executivo do Instituto Sou da Paz, Ivan Marques.
Pelo estatuto, hoje, para obter a posse é preciso ser maior de 25 anos, ter ocupação lícita e residência certa, não ter sido condenado ou responder a inquérito ou processo criminal, comprovar capacidade técnica e psicológica e declarar a efetiva necessidade da arma. Já o porte é proibido, exceto para forças de segurança, guardas, entre outros.
Além das vendas recentes, novas licenças para pessoas físicas, concedidas pela Polícia Federal, têm crescido nos últimos anos. Passaram de 3.029, em 2004, para 33.031, em 2017.
O número de novos registros para colecionadores, caçadores e atiradores desportivos, dados pelo Exército, também subiu. Em 2012, foram 27.549 e, em 2017, 57.886.
No total, hoje, são mais de meio milhão de armas nas mãos de civis: 619.604.
“No debate eleitoral, tem se falado que é impossível comprar arma no Brasil. Mas os dados mostram que isso é falso”, diz o diretor do Sou da Paz.
Para o pesquisador em segurança pública Fabrício Rebelo, favorável à liberação do porte, os números são baixos em relação à população. “É ínfimo. No Uruguai, há uma arma para cada seis pessoas.”
Em seus discursos, Bolsonaro tem defendido a mudança do Estatuto do Desarmamento. “No que depender de mim, com a ajuda de vocês, todos terão porte de arma de fogo”, disse ele, em 2017, em Belém.
A proposta consta no plano de governo: “Reformular o Estatuto do Desarmamento para garantir o direito do cidadão à LEGÍTIMA DEFESA”.
Nos últimos anos, algumas medidas flexibilizaram a lei, como um decreto presidencial de 2016, que ampliou a validade do registro de armas de três para cinco anos. “É a mesma lógica da carteira de motorista. A pessoa precisa mostrar periodicamente que não tem problema de visão ou psicológico”, diz o gerente do Sou da Paz, Bruno Langeani.
Portaria do Exército, de 2017, também afrouxou o estatuto. A medida permite que atiradores desportivos levem armas, carregadas com munição, até o local de tiro. “Na prática, o Exército passou por cima do estatuto e permitiu o porte para mais de 170 mil atiradores”, diz o economista do Ipea Daniel Cerqueira, conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
No entanto para revogar o estatuto é preciso aprovar nova lei. Um projeto do deputado Rogério Peninha Mendonça (MDB), de 2012, está pronto para votação no plenário.
Para se tornar lei, precisa ser aprovado por maioria simples na Câmara e, se passar sem alteração no Senado, segue para sanção presidencial. Esse texto, aprovado por uma co- missão especial em 2015, tem mais de 40 projetos anexados.
Dentre as mudanças, o projeto reduz a idade mínima da posse, de 25 para 21 anos, e permite que pessoas respondendo a inquérito ou processo criminal comprem armas, contanto que não tenham sido condenadas por crime doloso.
O projeto de lei também retira a obrigatoriedade de apresentar uma efetiva necessidade para ter uma arma, ponto avaliado hoje pela PF. O porte seria liberado para maiores de 25 anos que cumprirem os requisitos para a posse.
Segundo levantamento do Sou da Paz, há mais de 160 propostas em tramitação no Congresso para alterar o estatuto. Muitas pedem o porte de armas para categorias profissionais, como advogados, caminhoneiros e taxistas.
Se não quiser esperar o Congresso, Bolsonaro poderia alterar a regulamentação da lei e ampliar o acesso a certos tipos de armas. “É um risco. Ele pode liberar a compra do fuzil, hoje restrito”, diz Langeani, do Instituto Sou da Paz.
Para o presidente do Movimento Viva Brasil, Bene Barbosa, a favor da liberação das armas, o presidente pode orientar a PF a conceder mais registros. “Nos governos anteriores e no atual, a determinação era liberar o mínimo possível. Isso pode mudar.”
Langeani discorda: “A PF tem autonomia. Me parece uma visão pouco factível.”
O pesquisador Rebelo e o presidente do Viva Brasil acreditam que Bolsonaro pode flexibilizar a posse de armas. Segundo eles, o estatuto diz que é preciso “declarar a efetiva necessidade” da arma, mas a comprovação foi regulamentada por decreto e poderia ser suprimida. Com isso, bastaria declarar a necessidade da posse, sem ter que prová-la.
“Assim o Estado perderia o controle sobre a circulação de armas em certos territórios. Será que faz sentido permitir mais uma arma em áreas conflagradas?”, diz Marques, do Sou da Paz. Para o instituto, essa alteração seria “legislar por decreto” e poderia ser questionada juridicamente até chegar ao Supremo.
Um dos principais argumentos dos contrários ao estatuto é que a lei “desarmou cidadãos de bem”, mas não impediu o acesso de criminosos a armas. Eles afirmam que o estatuto não evitou o aumento da taxa de homicídio, hoje em cerca de 30,8 para cada 100 mil habitantes, em um total de 63.880 em 2017.
“É verdade que está crescendo, mas a um ritmo bem menor do que antes”, diz Ignacio Cano, do Laboratório de Análise da Violência da Uerj.
A lei, sozinha, afirma Langeani, não é “solução mágica” para a segurança. “Mas claramente impacta. A única redução de homicídios nos últimos 20 anos foi depois do estatuto, em 2004 e 2005.”
Segundo pesquisa do Ipea, a cada 1% a mais de armas de fogo em circulação, os homicídios aumentam 2%. Em 2016, 71% dos homicídios no Brasil foram por armas de fogo.
Por outro lado, os que defendem a liberação das armas lembram que a maioria dos brasileiros votou a favor da comercialização. Com o referendo de 2005, a venda de armas se manteve legal.
Para a coordenadora de segurança pública do Instituto Igarapé, Michele dos Ramos, ser a favor do comércio não significa ser contra o estatuto. “A maioria da população é contra liberar o porte”, diz.
O Exército diz faltar dados para entender as variações nas vendas, mas que o avanço pode estar relacionado a uma melhoria no atendimento e rapidez nos registros. O Exército disse ainda que cresceu o interesse no tiro desportivo, após eventos internacionais, como a Olimpíada. O Ministério da Segurança Pública e a PF não se manifestaram.