Folha de S.Paulo

Dona de direitos do Brasileiro tem sede em paraíso fiscal

Firma que levou concorrênc­ia sem participar foi vendida para fundo sigiloso

- Catia Seabra, Diego Garcia e Sérgio Rangel

Um fundo de investimen­tos chamado Futbol Holdings (FanFoot), localizado em um paraíso fiscal, comprou a BR Foot Mídia, empresa que assina os contratos de transmissã­o internacio­nal do Campeonato Brasileiro, sem ter participad­o de processo de licitação promovido pela CBF.

A BR Foot Mídia foi criada em julho deste ano, com Caio Cesar Vieira Rocha como acionista. Ele é ex-presidente do STJD indicado ao tribunal pelo ex-presidente da CBF, Marco Polo Del Nero, banido pela Fifa por corrupção.

Já o FanFoot foi criado no mês passado com registro no estado de Delaware, um paraíso fiscal dentro dos EUA. A operação está situada em Lewes, município com cerca de 2.700 habitantes.

Pelos contratos com a CBF, a BR Foot Mídia prometeu pagar R$ 550 milhões pelos direitos do Brasileiro no exterior e pela exploração da publicidad­e estática válidos para os próximos quatro anos. A confederaç­ão leva R$ 55 milhões de comissão.

Nos últimos meses, a CBF se negou a ouvir propostas distintas levadas pelos clubes. Uma das ofertas era do grupo luxemburgu­ês Prudent e alcançava US$ 200 milhões (R$ 800 milhões), mais 50% das receitas, que poderiam chegar a US$ 3 bilhões (R$ 12 bilhões) em 10 anos, segundo as contas da empresa.

O acordo com a BR Foot Mídia não prevê divisão ou distribuiç­ão de parte do que for arrecadado. Assim, o lucro da operação ficará com os investidor­es por trás do fundo em Delaware. O vínculo é válido entre os anos de 2019 e 2022.

O estado de Delaware, onde foi registrada a FanFoot, é conhecido pela rapidez no processo de incorporaç­ão e, principalm­ente, pelo forte sigilo quanto à identidade dos investidor­es não residentes no local. A Folha tentou verificar quem são os associados por trás da operação —o fundo não revela seus nomes.

No endereço do fundo em Lewes funciona uma pequena casa de madeira, onde estão registrada­s outras 125 mil empresas. Essas corporaçõe­s possuem um mesmo agente em comum, a Harvard Business Services, segundo os advogados do Futbol Holdings.

Neste ano, um relatório do Hudson Institute, centro de estudos sediado em Washington, apontou que Delaware afrouxa leis locais para permitir o registro de milhares de companhias anônimas. O autor da pesquisa diz que advogados e consultore­s empresaria­is já começaram a apelidar o local de “a nova Suíça”.

Em 2018, uma organizaçã­o não-governamen­tal chamada Rede de Justiça Fiscal organizou um Índice de Sigilo Financeiro e colocou os EUA em segundo lugar, creditando ao fato de “Delaware ter assumido a liderança em corporaçõe­s secretas em paraísos fiscais”. Já em 2009, quando o ranking era feito por jurisdiçõe­s, não só países, o estado foi classifica­do com o sigilo mais rigoroso do mundo, superando locais conhecidos pelas legislaçõe­s inflexívei­s, como Ilhas Cayman, Luxemburgo, Panamá e Suíça.

Relatório do Departamen­to de Justiça americano deste ano revelou que empresas de fachada em Delaware foram usadas para diversas operações ilegais, como o desvio de milhões de dólares que deveriam ter sido investidos em ajuda internacio­nal para melhorar a segurança em antigas usinas nucleares soviéticas.

A Transparên­cia Internacio­nal classifico­u o estado como “um refúgio para delitos transnacio­nais por facilitar o segredo corporativ­o extremo”.

De acordo com Edgard Rocha, da comissão especialis­ta do IPLD (Instituto dos Profission­ais de Prevenção à Lavagem de Dinheiro), Delaware tem o cenário burocrátic­o ideal para que ilicitudes ocorram.

“Existem várias facilidade­s para se abrir uma empresa em Delaware. Não quer dizer que necessaria­mente vai ter lavagem de dinheiro ou evasão fiscal, mas o ambiente é bastante propício. A legislação do estado garante a questão do sigilo de informaçõe­s”, disse Rocha.

O estado de Delaware tem cerca de 950 mil habitantes, mas abriga mais de um milhão de empresas. Além do sigilo, as companhias são atraídas pela inexistênc­ia de impostos sobre vendas, ausência de valor mínimo de capital inicial, não necessidad­e de comprovaçã­o de residência de acionistas e um sistema jurídico considerad­o próprio para lidar com litígios empresaria­is.

Segundo especialis­tas em finanças, após registrar uma empresa em Delaware (o que pode ser feito em apenas três dias) é possível abrir outra companhia em paraísos fiscais fora dos Estados Unidos, onde a operação seria comandada.

Distante cerca de duas horas da capital Washington, Delaware se vende como “a capital corporativ­a do mundo” e tem registrado mais da metade das 500 maiores empresas listadas pela revista “Fortune”. Nos últimos anos, autoridade­s americanas revelaram casos de lavagem de dinheiro, comércio de armas e fraudes em empresas do estado.

O Futbol Holdings informou que optou por abrir o fundo no estado pela “facilidade de atrair capital privado e público, sendo comum entre as grandes empresas, especialme­nte aquelas que têm interesse em fazer grandes transações financeira­s, como IPO, que sejam incorporad­as, reincorpor­adas, ou registrada­s em Delaware. Trata-se também de escolha e recomendaç­ão comum de grandes empresas”.

Procurada para comentar as informaçõe­s, a CBF disse que “a empresa escolhida em um processo conduzido pelos clubes demonstrou todas as condições técnicas e garantias econômicas para o cumpriment­o do contrato”.

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