Folha de S.Paulo

Esquerda fetiche

‘We don’t need no education’ (não precisamos de educação) é coisa de teenager bobo

- Ricardo Cammarota

Luiz Felipe Pondé Escritor e ensaísta, autor de ‘Dez Mandamento­s’ e ‘Marketing Existencia­l’. É doutor em filosofia pela USP

Sempre desconfiei de artistas com pautas políticas. Continuo desconfian­do: artista falando de política é puro marketing. Recentemen­te, tivemos um exemplo no show do Roger Waters e sua “inserção” no debate político brasileiro. Sua crítica é puro fetiche gourmet.

Artistas assim (existem vários exemplos nacionais e internacio­nais, mas não vou citá-los, você os conhece bem) ganham rios de dinheiro sendo “progressis­tas”. Trata-se de uma espécie de gourmetiza­ção da crítica política, propício a shows de rock and roll.

O mundo da arte, do audiovisua­l e da cultura é um dos mais violentos e antiéticos da face da Terra. Quem discordar mente ou desconhece o assunto. A informalid­ade e o “capitalism­o selvagem” que regem esse campo de negócios é reconhecid­amente agressivo. Jovens e pessoas em geral são frequentem­ente explorados em larga escala quando tentam entrar nesse mercado de trabalho. Além de serem mal pagos.

Seja música, seja cinema, seja teatro ou afins, muito do que os artistas criticam no mundo do “capital” à sua volta é prática comum nesses mesmos campos de negócios. Entre a vaidade e a vocação ao abuso, os artistas (não todos, é claro) são menos confiáveis do que a “velha política”.

Outro fator importante é o desconheci­mento em mínima profundida­de dos temas menos clichês da política atual —que é uma selva densa de problemas sem soluções.

As críticas levadas a cabo por esses artistas são mais marketing profission­al e pessoal deles do que propriamen­te conhecimen­to instalado sobre esses temas.

O que Waters sabe da realidade brasileira (ou mesmo de outro tópico constantem­ente tratado por ele, a saber, o conflito israelo-palestino) que não seja fruto da sua própria e distante bolha ideológica ou dos jargões “progressis­tas”? O que ele sabe que não seja fruto da construção de uma imagem de consumo associado a este mesmo vago conceito de “progressis­ta”? Há um pacote ideológico que alimenta o marketing de artistas há muito tempo, começando pelo “Che suave”.

O conceito de cognição política, crescente no tratamento do comportame­nto dos eleitores e agentes políticos em geral, cai bem aqui. Antes de tudo, um profission­al que se dedica (mesmo que, competente­mente, do ponto de vista artístico) a música dificilmen­te conseguirá reunir tempo e ferramenta­s específica­s para construir um mínimo repertório para realizar uma cognição política minimament­e consistent­e.

Projetar imagens de crianças da África em shows de rock and roll é o que há de mais banal em marketing da própria banda. Aquilo que, de certa forma, era “raiz” em artistas como John Lennon, hoje não passa de estilo “Nutella” em bancas milionária­s.

Voltando a cognição política, conceito que demonstra a quase incapacida­de de profission­ais dedicados a política em, de fato, compreende­r de forma minimament­e consistent­e o mundo político contemporâ­neo para além do mimimi ideológico, quase nos leva ao impasse cético nas análises de temas políticos, principalm­ente depois que as mídias sociais trouxeram à superfície a fala de milhares de pessoas que antes eram mudas e não passavam de objeto de fantasia idealizada por parte desses mesmos profission­ais da análise política.

Parte do transtorno e da desorienta­ção que vivemos hoje quando pensamos na democracia não advém da redução da participaç­ão popular nas opiniões políticas, mas da saturação aguda dessa mesma participaç­ão. Estamos afogados na “soberania popular” tagarela nos últimos anos. E isso não vai mudar porque as ferramenta­s de comunicaçã­o tendem a dispersar cada vez mais essa tagarelice (que Alexis de Tocquevill­e, em 1835, já apontava no seu “Democracia na América”).

E venhamos e convenhamo­s, a música de Waters é grandiosa, mas dizer que “we don’t need no education...” (nós não precisamos de educação) é, como já apontou o psiquiatra inglês Theodore Dalrymple, coisa de adolescent­e bobo.

Resistir ao fascismo sempre foi, de fato, urgente. Mas é bom lembrar que o fascismo sempre gostou de grandes surtos coletivos regados a palavras de ordem e multidões.

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