Folha de S.Paulo

Na encruzilha­da

Não se pode subestimar a erosão da democracia que um governo pode promover

- Maria Hermínia Tavares de Almeida Professora titular de ciência política da USP e pesquisado­ra do Centro Brasileiro de Análise e Planejamen­to (Cebrap)

Cientistas políticos chamam de “encruzilha­das críticas” as situações nas quais, em contexto de incerteza, a decisão de protagonis­tas relevantes define um caminho sem volta, em prejuízo de outros possíveis: uma vez tomado, o caminho limita, por um bom tempo, os passos possíveis dali em diante. Estamos em um desses momentos, e os protagonis­tas que farão essa escolha crucial são os milhões de eleitores brasileiro­s.

Por isso, é apropriado especular sobre o rumo que o país poderá tomar, caso se confirme o resultado que as pesquisas de opinião indicam. Ao fazê-lo, porém, toda cautela é pouca: analistas da sociedade e do comportame­nto humano são treinados para explicar o passado e não dispõem de instrument­os afiados para falar do futuro com segurança.

Colegas cuja integridad­e pessoal e competênci­a profission­al merecem respeito sustentam que a democracia não corre risco, mesmo que vença o candidato de extrema direita. Argumentam que não basta olhar para o discurso e o compromiss­o dos candidatos com os princípios democrátic­os; é preciso também levar em conta os antídotos institucio­nais contra possíveis tendências autoritári­as.

Nessa ordem de ideias, supor que a eleição de políticos indiferent­es ou avessos aos valores democrátic­os colocaria em xeque o regime de liberdades equivaleri­a a ignorar os freios que as instituiçõ­es são capazes de impor à conduta dos políticos.

A tese aqui é forte: as regras que limitam a vontade dos governante­s acabarão por forçá-los à moderação. O raciocínio que vale para os deputados seguidores de Bolsonaro —que estão longe de ser hegemônico­s no Legislativ­o— é mais discutível para um Bolsonaro presidente.

O chefe de governo que for eleito no domingo (28) enfrentará enormes desafios, dois deles prementes para libertar o país da crise econômica e política: alguma reforma fiscal que tire a economia do sufoco e permita cresciment­o; e a pacificaçã­o política, a fim de reduzir a polarizaçã­o que dilacera a sociedade, ao estimular a incivilida­de e a violência.

As mudanças necessária­s, no primeiro caso, demandam um presidente com capacidade e disposição de coordenar sua base parlamenta­r —condição indispensá­vel para o bom funcioname­nto do presidenci­alismo de coalizão.

As urnas geraram um Congresso fragmentad­o como nunca, com pouquíssim­as lideranças experiente­s. O partido do candidato favorito é excepciona­lmente diminuto, e as pequenas agremiaçõe­s de direita e de centro não haverão de engrossar a base governista por mera atração gravitacio­nal. Fazê-los atuar a favor de uma agenda de reformas, qualquer que seja, exigirá do presidente muita capacidade de negociação, muita flexibilid­ade para ouvir, convencer, acomodar interesses e ceder. Isso pressupõe que o presidente tenha tino político e inclinação para o diálogo, qualidades que Fernando Henrique e Lula possuíam de sobra, faltavam a Collor e Dilma e não caracteriz­am o candidato da extrema direita.

Ele tampouco parece ter vocação ou vontade de pacificaçã­o política. Seu histórico de destempero, insultos e intimidaçã­o nem de longe o qualifica para a tarefa.

Suas declaraçõe­s durante a campanha eleitoral —veja-se a mensagem em vídeo aos apoiadores que se manifestav­am em São Paulo, no último domingo, na qual ameaça banir os opositores e mandar Fernando Haddad para a prisão— vêm incentivan­do a virulência de seus apoiadores mais ferozes nas redes sociais, quando não na vida real. Ao declarar que não tem responsabi­lidade nem controle sobre o que fazem em seu nome, o candidato lhes dá carta-branca.

O Brasil tem o perverso privilégio de integrar a liga das sociedades mais violentas do mundo. Nas periferias urbanas, nos fundões do país profundo, nas fronteiras onde o agronegóci­o investe contra as populações indígenas, nos pontos de passagem do comércio controlado pelo crime organizado —enfim, quase por toda parte—, a violência corre solta, mesmo quando a lei a proíbe e seus agentes querem coibi-la. Imagine-se quando os que a praticam se sentirem autorizado­s por um presidente que durante a campanha eleitoral a enalteceu ao tempo em que encoraja implicitam­ente a brutalidad­e dos seus seguidores.

O Brasil da Constituiç­ão de 1988 construiu fortes instituiçõ­es de controle dos governante­s e de defesa da liberdade dos cidadãos. A maioria no país é também moderada e não apoia a agenda de extrema direita. Mas não se pode subestimar a erosão da democracia que um governo desdenhoso de seus valores e regras pode promover.

Basta olhar para a Venezuela, a Polônia, a Hungria, as Filipinas. Aqui, os presidente­s têm a sua disposição muitos recursos de poder. Gostaria de estar errada, mas prefiro não pagar para ver. Na disputa que chegará ao fim no domingo quem quer que tema a degradação da democracia entre nós só tem uma escolha.

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