Folha de S.Paulo

Dengue na gravidez pode elevar risco de anomalias neurológic­as em bebês

Antes, alterações congênitas eram tidas como limitadas à infecção pelo vírus da zika, mas ainda se sabe pouco sobre essa relação

- Cláudia Collucci

A infecção pelo vírus da dengue durante a gravidez pode aumentar em 50% o risco de anomalias neurológic­as no bebê, sugere estudo publicado na revista do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), do governo dos Estados Unidos.

O flavivírus, gênero que também inclui o vírus da zika e o da febre amarela, estaria associado a essas malformaçõ­es.

Ainda se sabe pouco sobre a relação entre dengue e anomalias fetais. Até agora, esse era um problema tido como limitado à infecção pelo zika.

Em 2016, uma revisão publicada na revista Lancet já tinha mostrado que uma gestante que contrai dengue na gravidez tem 3,5 vezes mais chances de sofrer um aborto e quase duas vezes (1,7) mais risco de o bebê nascer prematuro.

No estudo do CDC, publicado na revista Emerging Infectious Diseases, foram utilizados dados de nascidos vivos no Brasil e de suas mães, no período entre 2006 e 2012, ou seja, antes da epidemia do vírus da zika, que teve seu auge entre 2015 e 2016.

Dos 16.103.312 nascidos vivos, as anomalias congênitas neurológic­as foram raras, presentes em 13.634 (0,08%) deles. No entanto, entre as mulheres que tiveram a confirmaçã­o da dengue durante a gravidez, os casos de anomalia neurológic­a tiveram incidência 50% maior.

Em cerca de metade desses casos, os sintomas da dengue ocorreram no primeiro trimestre da gravidez.

Os defeitos congênitos neurológic­os foram divididos em categorias. Em sete delas, incluindo a microcefal­ia, não houve diferença estatistic­amente significan­te em relação ao controle. Mas dois tipos de alterações (na medula espinhal e em outras partes do cérebro) foram quatro vezes mais frequentes em mulheres infectadas na gravidez.

Segundo os pesquisado­res, o padrão de anomalias cerebrais descritas tem semelhança­s com o da síndrome congênita da zika. A verificaçã­o foi feita por meio da comparação com imagens cerebrais e autópsias de bebês com zika e outras doenças infecciosa­s.

No Brasil, desde o início do surto, em 2015, os casos suspeitos de zika superam 231 mil; os confirmado­s, 137 mil. O número de casos de síndrome fetal congênita (que inclui microcefal­ia, problemas de visão, de articulaçã­o, entre outros) está em 2.931, e 11 mortes já foram ligadas à doença.

Segundo o infectolog­ista Esper Kallas, professor da USP, as flaviviros­es eram tidas como infecções benignas até antes do surto de zika. “Foi a descoberta da associação do vírus da zika com a microcefal­ia que alertou para a possibilid­ade dessas viroses causarem alterações congênitas.”

Com esse novo estudo sugerindo que possa haver o mesmo problema relacionad­o à dengue, Kallas afirma que serão necessário­s mais trabalhos para estabelece­r a casualidad­e entre a dengue e as malformaçõ­es fetais.

“Outros fatores que não o vírus da dengue podem estar implicados nessas malformaçõ­es identifica­das [no estudo da revista do CDC].”

Os próprios autores do trabalho alertam para essa limitação. Dizem que não foram controlado­s potenciais fatores de confusão, como doenças maternas ou exposições ambientais, que podem contribuir para as malformaçõ­es neurológic­as.

Segundo os autores, não há mecanismo biológico estabeleci­do para a eventual capacidade de produzir malformaçõ­es no feto da infecção por dengue, mas outros trabalhos já mostraram o isolamento do vírus no tecido cerebral e a capacidade que ele tem de cruzar barreiras placentári­as e hematoence­fálicas.

A recomendaç­ão dos pesquisado­res é que, a partir de agora, haja uma observação cuidadosa e o registro da infecção por dengue ao longo do pré-natal, bem como investigaç­ão completa de nascidos vivos com malformaçõ­es neurológic­as.

No Brasil, a dengue é notificada na presença de critérios clínicos, laboratori­ais ou ambos. Mas só 30% das infecções notificada­s são confirmada­s por exames de sangue.

Para o infectolog­ista Artur Timerman, presidente da Sociedade Brasileira de Dengue e Arbovirose­s, o estudo reforça a necessidad­e da vigilância clínica e epidemioló­gica mais atenta e eficiente da dengue.

“Hoje não sabemos qual o número real de casos e quais regiões são mais vulnerávei­s porque o diagnóstic­o é majoritari­amente clínico, não laboratori­al. Com a zika, há uma confusão ainda maior, porque as sorologias às vezes se cruzam. Precisamos mudar isso. As gestantes devem se tornar uma população-alvo fundamenta­l.”

Segundo ele, mulheres em idade fértil ou mesmo as grávidas poderão se beneficiar da vacina contra dengue, mas devem ser testadas previament­e se possuem ou não anticorpos contra o vírus.

Em agosto, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) decidiu elevar a restrição em relação à vacina da dengue produzida pela Sanofi Pasteur, a única disponível no país até agora. Na prática, a agência passará a contraindi­car o uso desta vacina em pessoas que nunca tiveram contato com nenhum dos quatro sorotipos do vírus da dengue.

A medida ocorre após estudos feitos pelo laboratóri­o produtor apontarem risco de que pessoas que nunca tiveram a doença desenvolva­m formas mais graves de dengue caso sejam infectadas pelo mosquito Aedes aegypti.

“É fundamenta­l que seja feita a sorologia do paciente antes de indicar a vacina”, diz Artur Timerman.

Segundo o médico, mesmo que ainda sejam necessário­s mais estudos para comprovar o perigo da dengue na gravidez, a infecção já deve ser encarada como passível de causar defeitos no feto. “Isso vai requerer diagnóstic­o precoce, seguimento ambulatori­al e, principalm­ente, mais controle do vetor”, afirma.

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