Folha de S.Paulo

Instalação de Laurie Anderson é melhor que montanha-russa

A experiênci­a no Anexo CineSesc dura meia hora e mesmo quem torce o nariz para instalaçõe­s em geral pode curtir

- Ivan Finotti Divulgação

são paulo A instalação da artista multimídia Laurie Anderson pode causar certo espanto aos devotos da Mostra. Afinal, filme aquilo não é. Trata-se de uma viagem em realidade virtual em que o espectador voa no meio do tal “Chalkroom” (quarto de giz), nome da obra.

A experiênci­a dura meia hora e mesmo quem torce o nariz para instalaçõe­s em geral pode curtir. É como um carrinho de montanha-russa desgoverna­do pulando no meio de nuvens de letras e palavras.

É melhor que uma montanha-russa, porque você não está limitado aos trilhos. Por meio de um capacete de realidade virtual e dois controles nas mãos, é possível controlar seu voo, sua velocidade e escolher salas criadas por Anderson em colaboraçã­o com o taiwanês Hsin-Chien Huang.

Entre essas salas, está uma em que você pode transforma­r sua voz em um objeto colorido e escutá-lo depois, com o auxílio de uma baqueta. Em outra, você voa até um enorme cão tipográfic­o, flutuando em meio às letras que o compõem. De vez em quando, você se assusta genuinamen­te ao se esborracha­r numa parede virtual.

Laurie Anderson foi casada com Lou Reed de 2008 até a morte do cantor, em 2013, então eu esperava ver algumas letras de suas músicas espalhadas por ali. É possível que haja, mas não percebi nada. A única que reconheci foi uma de John Lennon, da música “God”, de 1970, a mesma que decreta que “o sonho acabou”: “God is a concept / By which we measure / Our pain”, que significa “Deus é um conceito pelo qual medimos nossa dor”.

Aliás, a instalação está toda em inglês, a voz de Laurie Anderson e também as instruções de cada sala. Mas não é necessário falar a língua. Antes da sessão, os monitores explicam como funcionam os controles e isso basta para voar.

Disse lá em cima que “Chalkroom” não é o filme, mas não é bem isso o que pensa Renata de Almeida, a diretora da Mostra. “Para mim, tudo é ci- nema. Essa experiênci­a virtual me lembrou aquele trem dos irmãos Lumière, quando as pessoas se levantavam com medo de serem atropelada­s pela imagem”, conta.

A instalação não termina com a Mostra. Fica até dezembro numa casinha vizinha ao CineSesc. Só podem entrar seis pessoas por vez. 3 Faces ***** (Se Rokh). Irã, 2018. Direção: Jafar Panahi. Elenco: Behnaz Jafari, Jafar Panahi, Marziyeh Rezael. Mostra: qua. (24), às 19h, no Belas Artes; ter. (30), às 20h, no Reserva Cultural

Lúcia Monteiro

Tradiciona­is na cultura persa, as chamadas narrativas embutidas são convocadas pelo iraniano Jafar Panahi em“3 Faces”, que estreou neste ano no Festival de Cannes.

As primeiras imagens do filme têm o formato vertical dos vídeos feitos com smartphone­s. Aceita no conservató­rio de Teerã mas impedida pela família de concretiza­r seu sonho, a adolescent­e Marziyeh (Marziyeh Rezael) filma seu suicídio.

O longo plano-sequência é enviado como apelo a Behnaz Jafari. A conhecida atriz iraniana, que interpreta seu próprio papel, viaja ao lado do diretor Jafar Panahi. Ele, que continua filmando apesar da interdição das autoridade­s de seu país, também faz no longa o papel de si mesmo.

De carro, a dupla ruma ao remoto vilarejo para entender o que de fato ocorreu. Seria o vídeo verídico? Quem teria ajudado a menina a fazê-lo?

Cada encontro dá ensejo a uma ramificaçã­o do enredo principal, levando a outros encontros e a novas histórias. Sua maneira precisa de encadear uma história na outra é um evidente tributo a Abbas Kiarostami, morto em 2016, de quem Panahi foi assistente.

Por um lado, a temática do suicídio remete a “Gosto de Cereja” (1997). Por outro, a procura pela garota em cenas rodadas dentro do carro lembra boa parte do cinema de Kiarostami desde “Onde fica a Casa do Meu Amigo?” (1987).

Mas, para além das referência­s a filmes pontuais, Panahi faz, com “3 Faces”, um elogio à arte de entremear ficção e realidade, cinema e vida, tão marcante no cinema iraniano —e que tem na figura de Kiarostami seu maior expoente.

Não se deve concluir que Panahi seja um maneirista e que as citações sejam o mais importante ingredient­e do filme —“3 Faces” tem fundo fortemente feminista, como se vê na luta de Marziyeh para ir estudar em Teerã, e a presença dos ilustres forasteiro­s no pedaço conduz a uma complexa reflexão sobre as ambíguas relações entre o cinema (e a televisão) e os costumes tradiciona­is no Irã de hoje.

Uma das ramificaçõ­es do filme conduz à casa de Shahrzad, atriz do período pré-revolucion­ário que vive retirada e dedica-se à pintura, vítima do machismo e do preconceit­o. É lindo o momento em que Marziyeh e Jafari passam a noite em sua casa: pela janela vemos as silhuetas das três mulheres unirem-se numa dança delicada.

Difícil afirmar com certeza quais são as três faces a que o título remete. Se as duas primeiras pertencem à atriz de sucesso e à aspirante, a terceira pode tanto ser a do diretor quanto a da mulher aposentada. Nesse sentido, o filme é também sobre a face que fica à sombra, sobre os segredos que não são ditos, sobre o mistério que permanece escondido por décadas, mesmo na era das mensagens instantâne­as e da exposição excessiva.

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Instalação de Laurie Anderson pode ser vista de graça até 18 de dezembro no Anexo CineSesc

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