Folha de S.Paulo

O curioso caso da senhorita Brown

Não há certeza sobre como seria um governo Bolsonaro, mas dá para ter uma ideia

- André Stefanini Marcelo Coelho Membro do Conselho Editorial da Folha, autor dos romances ‘Jantando com Melvin’ e ‘Noturno’. É mestre em sociologia pela USP coelhofsp@uol.com.br

A torcida pode ser grande, mas uma ação imediata do Judiciário no caso do caixa 2 de Bolsonaro teria graves consequênc­ias políticas.

Que se abram as investigaç­ões, nada mais natural. Ir além disso —querendo desde já a impugnação da chapa— seria uma temeridade.

Afinal, o candidato do PSL vem preparando há bastante tempo —no mínimo desde sua primeira entrevista no hospital Albert Einstein— a versão de que já está eleito e que qualquer outro resultado será uma fraude.

É quase um “chamado às armas” e um estímulo para todo tipo de fábula golpista.

Não sabemos se tal reação contaria com grande apoio —mas o discurso radicaliza­nte (contido com muito esforço na atual campanha) ganharia pleno curso.

Vencendo Bolsonaro, o melhor seria esperar. O processo de impugnação de uma chapa presidenci­al no TSE demora um ou dois anos.

Até lá, é possível que o país recobre a lucidez, saia do seu surto fascistoid­e e venha a se confrontar com uma situação política e econômica ainda pior do que a presente.

Poder desenfread­o das milícias, com umas dez Marielles assassinad­as; um virtual genocídio de populações indígenas (naturalmen­te se discutirá se “é genocídio” ou “não é”); banho de sangue nas periferias; índices de desmatamen­to jamais vistos —já conto isso como certo.

Ah, mas a reforma da Previdênci­a... O estímulo aos investimen­tos... O controle do deficit público...

Não tenho tanta confiança nos poderes mágicos de um técnico do mercado financeiro como Paulo Guedes.

Talvez ele esteja sendo utilizado apenas como fachada liberal para um candidato associado a reivindica­ções corporativ­istas e rodeado de militares pouco adeptos da privatizaç­ão.

Fanáticos do livre mercado, do tiroteio, do fundamenta­lismo religioso e da ditadura militar têm um ponto em comum —enxergam mal a realidade.

Não possuem flexibilid­ade para se adaptar às circunstân­cias. Só sobrevivem batendo na mesma tecla, de preferênci­a com um martelo pesado o bastante para destruir o próprio piano.

Uma crise econômica internacio­nal, um agravament­o interno do desemprego ou da inflação, um tropeço no Congresso ou um escândalo de corrupção podem desequilib­rar a autoconfia­nça de Bolsonaro e abalar sua popularida­de.

Ah, mas ele é um rapaz inteligent­e, afirma um articulist­a na página 3 deste jornal. Tanto assim que passou no difícil concurso de admissão para a Academia Militar das Agulhas Negras!

É um exame para quem concluiu o ensino médio, com matéria equivalent­e ao de um vestibular (incluindo conceitos perigosos como feudalismo e revolução industrial).

Lembro que o ex-presidente Figueiredo, cujo intelecto não era fulgurante, destacouse em exames militares bem mais difíceis; na época, registrava-se que ele tinha sido “tríplice coroado” em não sei quais concursos de ingresso ao alto oficialato.

O fato é que os bolsonaris­tas acreditam em qualquer coisa. Minimizam o risco de ter na Presidênci­a um verdadeiro alucinado, sem nenhum preparo, sem ideia do que fazer com a economia e sem convicções democrátic­as.

Bem, diz outro articulist­a da Folha, pode ser que ele destrua a democracia e que seu governo seja um desastre. Pode ser também que não aconteça nada disso. O futuro, sentencia o articulist­a, é incerto. Por definição, não sabemos o que vai acontecer.

O raciocínio pode ser comparado ao de uma jovem e talentosa americana —chamemo-la srta. Brown— que faz seus preparativ­os para o casamento.

Recém-formada num curso à distância em neurofilos­ofia pela Universida­de do Arizona, a jovem conhece um rapaz pela internet. Peter é simpático, másculo, bem-apessoado e honesto.

A família se preocupa. “Viu os posts que ele publica?” Peter admira Hitler (a srta. Brown é afrodescen­dente). “Além disso, já quebrou a cara de cinco namoradas, tem dívidas de jogo, bebe como um condenado e sofreu três condenaçõe­s judiciais.”

“Quem? O Peter?” A srta. Brown suspira. “Isso não prova nada. É o passado dele. O futuro é desconheci­do. Ele pode perfeitame­nte ser um bom marido.”

A família acha que a srta. Brown está apaixonada e não vê a realidade. Como boa neurofilós­ofa, ela contesta essa ideia. “Não é o meu coração. Está tudo no meu cérebro.”

Com um cérebro desses, não sei se a srta. Brown seria aprovada na Academia das Agulhas Negras.

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