Folha de S.Paulo

Brasil se assusta com mortos mal enterrados

[resumo] Autor argumenta que aversão ao esclarecim­ento de episódios trágicos da história nacional abre espaço para que os espectros atormentad­os do passado exerçam constante pressão sobre aspectos do presente; produção literária recente, no entanto, tem s

- Por Marcos Vinícius Almeida Escritor e jornalista, é mestre em literatura e crítica literária pela PUC-SP e autor de ‘Paisagem Interior’ (ed. Penalux, 2017)

Quando o escritor Raymond Carver veio ao Brasil, em 1986 —além de jantar com Moacyr Scliar e visitar escolas nas quais ninguém tinha lido seus livros e tampouco se falava inglês—, ele escreveu um poema.

Nos versos de abertura desse texto, intitulado “Bahia, Brasil”, o poeta inaugura seu canto a partir de uma espécie de espanto diante da quantidade de chuva que jorra do céu, como de baldes, “desde a Criação”.

Mas é a partir do segundo verso que vem o elemento mais interessan­te, na recente tradução de Cide Piquet: “[...] Os edifícios/no velho bairro escravo se dissolvem,/e ninguém liga. Não os fantasmas/dos velhos escravos, ou dos novos./ A água é um prazer em suas costas laceradas./Eles poderiam chorar de alívio”.

Esses versos evidenciam uma questão que está no cerne daquilo que tenho chamado de “lógica do espectro”: uma aparição que se impõe, onde o autor, assim como os cavalos da umbanda ou os médiuns, não é nada além de um meio. Um instrument­o necromante no qual o espírito se assenta e se põe a falar.

A chuva descomunal pode ser lida como uma imagem da quantidade de lágrimas necessária­s para lavar os crimes históricos. Uma chuva tão poderosa que dissolveri­a os edifícios, rastros ao mesmo tempo concretos e espectrais reverberan­do a dor dos negros através dos séculos. E Carver expressou bem nossa relação com a história, nossa tendência ao esquecimen­to. Pois os edifícios, as marcas, os índices concretos da barbárie desaparece­m, e “ninguém liga”, exceto os fantasmas, que continuam a assombrar essas ruínas.

Se a história do século 20 se constitui sob o signo da catástrofe, a história da formação social e cultural do Brasil é um acúmulo de catástrofe­s.

E se, diante do trauma da ditadura civil-militar, a narrativa testemunha­l tem lutado contra o esquecimen­to dos mortos e desapareci­dos, em relação aos traumas da colonizaçã­o e da escravidão o combate é mais difuso e difícil. Desse pesadelo sangrento que é nossa formação histórica, restam apenas as ruínas, fragmentos de arquivos e a potência da ancestrali­dade. É necessário evocar esses fantasmas. Reconhecer que coabitamos o espaço com os mortos. Assumir nossa dívida.

No canto 11 da “Odisseia”, Ulisses está na terra dos feácios contando suas aventuras. Aqui aparece uma das passagens mais sombrias do poema: o mergulho no mundo dos mortos, a mansão de Hades.

Ulisses desce ao reino dos mortos para evocar Tirésias, cujos olhos cegos, intempesti­vamente anacrônico­s, podem atravessar os dias e olhar o futuro. O herói fura uma vala e a enche com o sangue de uma ovelha recém-abatida. Mas, antes que Tirésias possa se manifestar, a legião de mortos fareja o calor do sangue e se amontoa diante de Ulisses, que tenta espantá-la com uma espada.

Nesse momento, surge o espírito de Elpenor, abandonado insepulto no palácio de Circe. “Peço que te lembres de mim, quando te fores”, diz o espírito. “Não partas deixando-me para trás, sem pranteio e insepulto.”

Se o espírito sem túmulo não está separado do mundo dos vivos, tampouco está adequado ao mundo dos mortos. Habitante desse entrelugar, Elpenor é o protótipo do espectro.

“Hamlet” começa pelo retorno já esperado do rei morto, lembra Jacques Derrida em “Espectros de Marx” (ed. Relume Dumará). O retorno é, ao mesmo tempo, uma primeira vez e uma repetição. Repetição porque “um espectro é sempre um ‘retornante’”, o que volta dos mortos. Incontrolá­vel, o espectro não respeita a tranquilid­ade do tempo linear.

Para Derrida, o espectro é furtivo e intempesti­vo. É o morto mal enterrado, a figura atormentad­a do passado que irrompe no presente. Os mortos estão ao nosso lado, exigindo resposta. “Lembra de mim”, diz o espectro do rei morto ao se despedir do príncipe. “Lembra de mim”, diz o vulto de Elpenor a Ulisses.

O espectro é uma poderosa metáfora da memória. Ao aparecer, revela a falácia de um presente pacificado, puro, que rolaria rumo ao futuro sem obstáculos. O cortejo triunfal do progresso só pode avançar ao custo de sobrepujar uma legião de cadáveres, ao custo do recalque dos seus crimes, ao custo do apagamento sistemátic­o da memória.

(Vivemos isso hoje: a amnésia histórica em relação ao extermínio da população indígena, à escravizaç­ão da população negra, à tortura dos opositores nos períodos autoritári­os —Estado Novo e golpe de 1964. O esquecimen­to desses crimes históricos é também o que permite a naturaliza­ção do discurso autoritári­o do candidato Jair Bolsonaro. O sono da memória produz pesadelos reais.)

O ritual necromante de Ulisses, na visão de Jeanne Marie Gagnebin, prefigura o gesto do historiado­r, “cuja pena retraça, ou não, os atos de sofrimento dos mortos que nos precederam”. Em especial, daqueles esquecidos pela história, cujas memórias estilhaçad­as devem ser recolhidas. A história assume aqui a configuraç­ão de um “rito de sepultamen­to”.

Se a nossa história é assombrada por catástrofe­s, a escrita assume não apenas a função de prática necromante mas também o caráter de ritual exorcista. A produção literária que dialoga com a história (a ficção histórica, o romance histórico, o testemunho e a memória) termina por ser contaminad­a e estimulada por esses elementos espectrais.

No campo mais específico da ficção contemporâ­nea recentíssi­ma, temos o caso de “O Marechal de Costas” (2016), de José Luiz Passos, “De Mim Já Nem se Lembra” (2016), de Luiz Ruffato, e “A Noite da Espera” (2017), de Milton Hatoum, todos da Companhia das Letras.

A obra de Passos nasceu do encontro furtivo com o “fantasma” de Silvino de Macedo, que “habitava” um folheto perdido num sebo em Recife, episódio extraliter­ário que motivou a escrita do conto e depois do romance. Nela, a evocação da voz dos mortos se dá pelo procedimen­to de transcriçã­o de textos antigos, inseridos no corpo presente da narrativa sem aspas. As vozes dos vivos e dos mortos estão juntas, num processo de coabitação do espaço e do tempo.

Passos também acaba escavando episódios sombrios da história brasileira: “A ordem era enterrar os cadáveres a cinquenta metros do lugar do suplício, em covas sem marca e campo aberto, deixando a grama crescer por cima, para que as sepulturas se percam. Essa informação foi transmitid­a aos supliciado­s. Entre eles, o praça Isácio Coati tem apenas 14 anos”.

Esse apagamento da memória, comum em regimes totalitári­os —seja em campos de concentraç­ão nazistas ou em ditaduras sul-americanas—, é aqui antecipado de maneira cruel pela Primeira República, que nasceu com um discurso de liberdade e ordem contra a velha Monarquia.

A permanênci­a fantasmal reverbera na linguagem, no núcleo duro da frase, no próprio tempo verbal: “Isácio Coati tem apenas 14 anos”. Seu espectro continua presente, informa o verbo “tem”, como continua presente, na repetição do que não foi inscrito

Se a nossa história é assombrada por catástrofe­s, a escrita assume não apenas a função de prática necromante mas também o caráter de ritual exorcista

Hoje, temos o caso de ‘O Marechal de Costas’, de José Luiz Passos, ‘De Mim Já Nem se Lembra’, de Luiz Ruffato, e ‘A Noite da Espera’, de Milton Hatoum

na memória, o assassinat­o de jovens pelas mãos do Estado.

Na obra de Ruffato, o narrador carrega durante anos velhas cartas do irmão mais velho, endereçada­s à mãe. Um dia, numa mudança, essas cartas, como um fantasma traiçoeiro, “saltam à sua frente” e se impõem. Ao lê-las, o narrador vai ao encontro da voz de um morto, seu irmão José Célio, um torneiro mecânico que esteve envolvido com o movimento sindical no período da ditadura.

Se para o narrador o encontro com a voz do irmão morto funciona como um processo de elaboração de um luto privado, os índices históricos nas cartas remetem também a um luto público, dos mortos e desapareci­dos durante os anos de chumbo. Assim, desde o título, o livro inaugura um chamado, como se dissesse: “Lembra de mim” —como o fantasma de Hamlet—, você que “de mim já nem se lembra”.

Já em “A Noite da Espera”, de Milton Hatoum, o narrador Martim está exilado em Paris, por conta da ditadura no Brasil. Cercado por um mar de papéis, seus e de amigos, ele tenta compreende­r uma complicada relação com o pai e com a mãe.

Entre diários e cartas de amigos e familiares, alguns vivos, outros mortos, ele sentencia, em uma referência a Hamlet: “Fantasmas que surgem a qualquer momento entre o anoitecer e a primeira luz da manhã…”. E continua: “Talvez seja isso o exílio: uma longa insônia em que fantasmas reaparecem com a língua materna, adquirem vida na linguagem, sobrevivem nas palavras…”.

Walter Benjamin escreve que a figura do anjo da história —arrastada pela tempestade do progresso, enquanto uma monumental ruína se ergue aos seus pés— gostaria de parar e recolher os mortos. Em certa medida, é o que tem tentado fazer a nossa ficção. Afinal, nem mesmo os mortos, diz Benjamin, estão seguros diante do autoritari­smo.

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