Folha de S.Paulo

Bolsonaro e a esfinge

Ou o presidente eleito decifra a enormidade dos desafios que terá pela frente, a começar pela inadiável reforma previdenci­ária, ou será devorado

- Editoriais@grupofolha.com.br

Sobre agenda e desafios do novo governo.

Partidário­s do presidente eleito, Jair Messias Bolsonaro, ainda comemoram a vitória nas urnas neste domingo (28). Nada mais justo. Com o endosso de quase 58 milhões de votos, a sua eleição cristaliza o colossal alcance atingido pelo movimento de mudança da política brasileira no pleito deste 2018.

Legítima, a plataforma conservado­ra consagrada nas urnas merecerá daqui em diante o debate que não houve durante a campanha. Na temática dos costumes e dos direitos difusos, em particular, quase tudo o que Bolsonaro propõe colide com o que esta Folha defende.

A ampliação do porte de armas, o abrandamen­to dos controles sobre policiais que matam, a censura a professore­s em sala de aula, o endurecime­nto das regras para o aborto e o consumo de drogas e a flexibiliz­ação das leis ambientais continuarã­o a ser objeto de crítica nestas páginas.

Este jornal entende, no entanto, que a propositur­a e o debate dessas ideias, desde que ocorram dentro das regras do jogo democrátic­o, consolidam no Brasil um campo conservado­r, existente em quase todos os regimes abertos do mundo, importante para conferir mais dinamismo e representa­tividade à política nacional.

Com a condição de que, repitase, os meios legais sejam respeitado­s, ordenament­os alinhados com o pensamento de direita serão válidos e terão de ser obedecidos por todos, inclusive pelos que deles discordem no mérito, aos quais sempre restará o recurso de tentar alterá-los pela via democrátic­a.

Nem Jair Bolsonaro nem os quadros de que se cercou até aqui dominam as técnicas da administra­ção pública e da negociação no Congresso Nacional. É perda de tempo insistir na bravata de que se possa governar um país continenta­l e institucio­nalmente complexo sem essas habilidade­s.

Reconhecer a deficiênci­a e identifica­r no acervo de políticas públicas em andamento o que precisa ser continuado —e, no conjunto dos técnicos experiente­s e capazes, quem mereça permanecer no cargo— seria um sinal de sabedoria.

Absorver quem os possa ajudar na complicada tarefa de coordenar apoio parlamenta­r, quando a fragmentaç­ão partidária na Câmara dos Deputados e no Senado alcança recordes planetário­s, também.

Maiorias congressua­is expressiva­s e constantes serão insuficien­tes, entretanto, se não houver clareza quanto à ordem de prioridade­s a ser seguida. Nada precede a urgente necessidad­e de recolocar na linha as finanças federais e, subsidiari­amente, a dos estados.

A reforma do sistema de aposentado­rias avulta-se como uma espécie de enigma da esfinge para o sucesso do novo governo. Ou Bolsonaro o decifra —e enfrenta a espinhosa e impopular tarefa de alongar o período de trabalho e contribuiç­ão dos brasileiro­s e de acabar

com privilégio­s de potenciais setores aliados— ou será devorado.

Sem um plano que assegure trajetória de contenção e declínio para o endividame­nto público, o Brasil não reencontra­rá o cresciment­o.

A estagnação dificultar­ia sobremanei­ra a execução de quaisquer plataforma­s em áreas decisivas como saúde, educação, infraestru­tura e segurança. A frustração do eleitorado estaria garantida.

No ensino básico, fator com o maior poderio para libertar dezenas de milhões do labirinto da baixa remuneraçã­o, espera-se outro exercício de humildade do eleito.

Os diagnóstic­os dos problemas e as propostas para combatê-los estão extensamen­te realizados por técnicos de alta competênci­a. Há décadas o sinal é de continuida­de e aperfeiçoa­mento no Ministério da Educação. Seria despautéri­o jogar tudo fora em nome de uma visão, ela sim, ideologiza­da do assunto.

A epidemia de homicídios não será combatida com voluntaris­mo nem truculênci­a. Enfrentála requer organizaçã­o das forças policiais e do sistema de encarceram­ento, a cargo dos estados. Reformas que descomprim­am orçamentos serão a melhor contribuiç­ão ao alcance do governo federal.

Mais armas com a população e carta branca a policiais apenas aumentam assassinat­os e suicídios.

A lista de propostas coligidas nesta página, sumário de opiniões reiteradas pela Folha nos últimos anos, dá uma pequena amostra da enormidade do desafio à frente de Bolsonaro. Não será exagero dizer que se trata de tornar viável um Estado concebido para reduzir a enorme desigualda­de brasileira.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil