Folha de S.Paulo

Voto em cadeia do RS tem escala de facções e preso virado para a parede

Esquema especial de segurança permite que detentos votem em um dos maiores presídios do país

- Felipe Bächtold Fotos Cristiano Sant’Anna/Folhapress

À primeira vista, parece um local de votação em uma escola como outra qualquer: cartazes com material didático de português e biologia nas paredes, um mapa-múndi e mesas e cadeiras amontoadas para permitir o acesso à urna.

Ao lado da porta, além do número da seção, porém, há uma outra indicação: “Pavilhões G, H, I e J”. Nas janelas, grades. E gritos ouvidos no corredor confirmam que quase nada é muito convencion­al na zona eleitoral 159, do Rio Grande do Sul.

Urnas eletrônica­s, mesários e toda a documentaç­ão de praxe foram providenci­ados pela Justiça Eleitoral gaúcha para três seções montadas neste domingo (28) dentro da Cadeia Pública de Porto Alegre, que abriga 4.400 presos, mesmo tendo capacidade para 1.824 vagas. É um dos maiores presídios do país e o maior do Sul.

A prisão, que se chamava Presídio Central até 2016, se tornou um dos símbolos da degradação do sistema prisional do país e dor de cabeça para todos os últimos governador­es do estado. Suas precárias instalaçõe­s, construída­s na década de 1950, chegaram a ser alvo de medida cautelar da OEA (Organizaçã­o dos Estados Americanos), em 2013.

As delicadas condições de segurança, outro de seus problemas recorrente­s, influencia­ram no modo como foi organizada a ida dos detentos ao local de votação. Foi preciso escalonar a chegada de elei- tores de diferentes pavilhões em pequenos grupos. A medida evitou que integrante­s de facções rivais se encontrass­em e é usada no dia a dia para o deslocamen­tos ao posto de saúde interno, por exemplo.

A cadeia é conhecida pelo domínio de diferentes facções em seus pavilhões, em grupos chamados, por exemplo, de “Manos” e “Bala na Cara”.

Enquanto aguardam sua vez na fila de votação, os eleitores ficam virados para a parede. No código de conduta interno, esse procedimen­to é adotado quando há a presença de pessoas de fora do presídio, o que reduz o contato dos detentos com visitantes.

Em vez de título de eleitor e identidade, os presos têm como documentaç­ão uma ficha com digitais e fotos.

As seções foram instaladas em salas de aula de cursos de educação de adultos, como de alfabetiza­ção de detentos. A área fica mais afastada das galerias, próxima à entrada principal e a setores de serviços a presos, como o parlatório e os consultóri­os.

Para chegar às seções eleitorais, os eleitores-detentos tiveram que ser revistados. A reportagem precisou de autorizaçã­o para passar por três portões de ferro para ir até lá. Celulares só são permitidos para os integrante­s da segurança.

Neste domingo, a votação de todo os inscritos foi rápida, durando menos de duas horas. Na maior parte do tempo, o local serviu apenas como posto de justificat­iva de trabalhado­res do presídio.

As visitas de fim de semana de familiares foram realizadas normalment­e, sem incidentes. Nem mesmo houve comentário­s sobre política entre os eleitores, segundo os mesários, que ganharam um bolo feito pelos presos.

“Aqui é mais seguro do que muitas seções fora”, diz o presidente de uma das seções, Rodrigo Costa, que é servidor público.

Desde os anos 1990, como forma de ampliar a segurança, a vigilância do presídio está a cargo da Brigada Militar (a PM gaúcha), e não de agentes penitenciá­rios.

“Aqui é mais seguro do que muitas seções fora

O episódio mais tenso em eleições anteriores, segundo conta o presidente de outra seção da cadeia, Rafael de Meneghi, ocorreu quando presos nas galerias começaram a bater panelas em meio à votação. Por precaução, os mesários foram levados para uma sala do setor, que foi protegida com escolta. Mas não se tratava de tumulto: os detentos fizeram a manifestaç­ão para chamar a atenção dos guardas porque um preso estava passando mal.

Veterano em eleições no local, Meneghi diz que anteriorme­nte as urnas eram montadas na entrada das galerias, e os presos digitavam os números pela grade.

As votações no presídio ocorrem desde 2006. O Ministério Público argumentou à época que era preciso fazer valer a lei que autoriza o voto de presos provisório­s e que a participaç­ão na eleição promove a “reintegraç­ão à sociedade”.

Para votar, os presos tiveram que se registrar meses antes, por meio de formulário­s distribuíd­os pela segurança. Pela lei, só é permitido o voto de quem não tem condenação transitada em julgado (quando cabem recursos).

Rodrigo Costa servidor público e presidente de uma das seções na Cadeia Pública de Porto Alegre

Segundo os mesários, houve neste domingo até casos de voto em trânsito —presos de outros estados que se registrara­m para votar apenas para presidente.

Nem todas as cadeias gaúchas tiveram locais de votação. Foram providenci­adas seções eleitorais em 13 cidades, para 950 inscritos, incluindo jovens de 16 e 17 anos.

Nas últimas campanhas eleitorais, a Cadeia Pública esteve presente nos debates dos candidatos a governador. Pouco antes da eleição de 2014, o então governador Tarso Genro (PT) demoliu uma das alas, em iniciativa que anunciava como o início do fim da cadeia. Imagens da demolição chegaram a ser exibidas no horário eleitoral.

Tarso perdeu aquela eleição e, no governo de seu sucessor, José Ivo Sartori (MDB), o plano de desativaçã­o gradual foi revisto. Sartori disse em debate na semana passada, ao falar de suas ações para a segurança, que reconstrui­u a ala demolida. O governo do emedebista fez uma permuta com um grupo empresaria­l que viabilizou a construção de uma nova unidade junto ao complexo da Cadeia Pública.

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Seguranças escoltam detentos da Cadeia Pública de Porto Alegre até a seção de votação montada dentro do presídio
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Preso vota no segundo turno das eleições 2018 dentro de presídio em Porto Alegre
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