Folha de S.Paulo

Desafios da encruzilha­da democrátic­a

Temos que fortalecer o ativismo e batalhar por novas lideranças

- Antonia Pellegrino e Manoela Miklos Antonia é escritora e roteirista. Manoela é assistente especial do Programa para a América Latina da Open Society Foundation­s. Feministas, editam o blog #AgoraÉQueS­ãoElas

Quando essa coluna chegar a você, (e)leitora e (e)leitor, já teremos feito história e decidido quem irá liderar o país pelos próximos anos. Escrevemos ainda sem saber o desfecho. Mas há muito já está dado.

Sabemos que o país está diante de uma encruzilha­da. Somos uma sociedade racista, machista, conservado­ra. Mas podemos deixar de sê-lo. Podemos caminhar com maior ou menor celeridade para um novo normal. O resultado dessas eleições dirá muito sobre o tamanho da tarefa que recai sobre os ombros do movimento de mulheres, do movimento negro e demais movimentos sociais. Como diz a referência máxima do feminismo negro Angela Davis, não devemos transferir para o governo a responsabi­lidade de operar transforma­ções que só movimentos sociais conseguem conquistar — independen­temente de quem esteja no governo.

Sabemos também que a encruzilha­da posta diante de nós não é exclusivam­ente nossa. O mundo está diante de encruzilha­das semelhante­s que ganham nuances específica­s em cada conjuntura, em cada contexto. O neoliberal­ismo deu as mãos, pelo mundo afora, a um liberalism­o obscuranti­sta, parindo novas versões embrutecid­as e autoritári­as do conservado­rismo. É assim na Hungria de Orban. Nas Filipinas de Duterte. Na América de Trump. Pelo globo, vemos uma pandemia de conservado­rismo que flerta com o fascismo em todo o canto. E que articula, em todos os casos, um discurso hostil aos movimentos sociais e às minorias. Um discurso que relativiza violações de direitos. Um discurso que pode não desaguar sempre na constituiç­ão de regimes ditatoriai­s, mas está sempre intimament­e e sem pudor compactuan­do com processos assustador­es de desdemocra­tização.

Repaginado, esse conservado­rismo se apresenta para nós com tempero brasileiro e seduz um número escandalos­o de pessoas. Independen­temente do resultado das urnas que ainda não conhecemos ao escrever, sabemos isso: será preciso que democratas progressis­tas se dediquem a três desafios.

Primeiro, teremos que fortalecer nossa capacidade de trabalhar em conjunto pelo comum. Fortalecer o associativ­ismo. Investir na nossa capacidade de construir coletivos que defendam território­s livres, onde possamos debater e propor alternativ­as para que nossa sociedade transcenda sua condição conservado­ra e avance rumo à igualdade.

Segundo, teremos que, cada vez mais, batalhar pelo surgimento de novas lideranças —em especial aquelas cujos corpos são os mais vulnerávei­s: mulheres, homens e mulheres negros, indígenas. Aquelas e aqueles que um dos candidatos à Presidênci­a chama de adeptos do “coitadismo”.

Teremos que mostrar, ganhando ou não aquele que cunhou esse termo trágico, que não existe coitadismo. Existe luta. Existe gente que trabalha pela redução das desigualda­des. E que dará muito trabalho nos varrer do país ou nos prender. Somos muitas. Muitos. E juntas e juntos somos gigantes. Precisarem­os, enfim, de novos quadros políticos qualificad­os que renovem o sentido de noções tão maltratada­s no Brasil hoje. Como democracia. Ou representa­tividade.

Terceiro, teremos que trabalhar junto às instituiçõ­es para que esse conservado­rismo repaginado não dite uma era de retrocesso­s. Precisarem­os repactuar aquilo que nossa sociedade considera inegociáve­l. Os ganhos que os 30 anos de democratiz­ação nos legaram. E trabalhar para que os ganhos sejam irreversív­eis.

Essa é a lição de casa que temos que fazer. Sem isso, tanto faz quem ganha eleições. Não conseguire­mos imaginar novos futuros. E perderemos todas e todos.

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