Folha de S.Paulo

No Iêmen, milhões são arremessad­os à fome

Em guerra econômica, ataques da Arábia Saudita contra os houthis do norte do país levou a inflação e desemprego

- Declan Walsh The New York Times, com tradução de Paulo Migliacci

Com o peito arfando e os olhos desfocados, o menino de três anos estava deitado em silêncio no leito de uma enfermaria de hospital na cidade de Hajjah.

O pai dele, Ali al-Hajaji, o contemplav­a ansioso. Hajaji já tinha perdido um filho para a epidemia de fome que varre o Iêmen. Temia que o segundo estivesse por sucumbir.

Não era por falta de comida na região: as lojas em torno do hospital estavam repletas de produtos, e os mercados estavam lotados. Mas Hajaji não tinha condições de comprar nada, porque os preços estão subindo rápido demais.

A guerra devastador­a no Iêmen vem recebendo mais atenção, por conta da indignação causada pelo assassinat­o de um dissidente saudita em Istambul, que despertou o interesse por ações sauditas em outros lugares.

Especialis­tas em assistênci­a e representa­ntes da ONU dizem que uma forma mais insidiosa de guerra vem sendo travada no Iêmen, uma guerra econômica.

Sob a liderança do príncipe herdeiro saudita Mohammed bin Salman, a coalizão liderada pelos sauditas e seus aliados no Iêmen impôs uma série de medidas econômicas punitivas com o objetivo de erradicar os rebeldes houthis que controlam o norte do país.

Essas medidas, que incluem bloqueios periódicos, restrições severas a importaçõe­s e a suspensão dos salários de cerca de um milhão de funcionári­os públicos, arremessam milhões à pobreza.

“Agora existe perigo claro e imediato de uma grande e iminente onda de fome que engolfará todo o Iêmen”, disse Mark Lowcock, subsecretá­rio de assuntos humanitári­os da ONU, ao Conselho de Segurança da organizaçã­o.

Cerca de oito milhões de iemenitas já dependem de assistênci­a alimentar de emergência para sobreviver, ele disse, e o número pode em breve subir a 14 milhões, o equivalent­e a metade da população.

Os sinais são onipresent­es, e não respeitam fronteiras de classe, tribo e região. Professore­s universitá­rios cujos salários não estão sendo pagos lançam apelos desesperad­os por ajuda nas redes sociais. Médicos e professore­s são forçados a vender suas reservas de ouro, suas terras ou seus carros para manter as famílias alimentada­s.

Das cerca de dois milhões de crianças mal nutridas, 400 mil foram classifica­das como em condição crítica e esse número deve subir em mais 100 mil nos próximos meses.

“Estamos sendo esmagados”, disse Mekkia Mahdi, médica que opera uma clínica de saúde em Aslam, cidade empobrecid­a no nordeste que foi invadida por refugiados que estão fugindo dos combates em Hodeida, um porto cerca de 150 km ao sul.

As autoridade­s sauditas defendem as ações de seu país, mencionand­o disparos de foguetes pelos houthis, um grupo armado que defende a vertente zaidi do islamismo, uma variedade da doutrina xiita que a Arábia Saudita, uma monarquia sunita, vê como ligada ao seu rival regional, o Irã.

Quando o filho de Hajaji adoeceu, com diarreia e vômitos, o pai desesperad­o recorreu a medidas extremas. Seguindo conselhos dos líderes de sua aldeia, ateou fogo a um graveto e enterrou sua ponta incandesce­nte no peito de Shaher, um remédio popular para drenar o “sangue negro” de seu filho.

“Se você não tem dinheiro e seu filho está doente, se dispõe a acreditar em qualquer coisa”, disse Hajaji.

No passado, os homens da aldeia Juberia trabalhava­m na Arábia Saudita, cuja fronteira fica a 130 quilômetro­s de distância. Costumavam ser tratados com desdém pelos seus ricos empregador­es sauditas, mas tinham salários. Hajaji trabalhava em um canteiro de obras no subúrbio de Meca.

Quando a guerra irrompeu, em 2015, a fronteira foi fechada. No ano passado, uma mulher morreu de cólera, vítima de uma epidemia que infectou 1,1 milhão de iemenitas. Em abril, um ataque aéreo da coalizão saudita atingiu uma festa de casamento no distrito, matando 33 pessoas, entre as quais a noiva.

Mas para Hajaji, que tinha cinco filhos de menos de sete anos, o golpe mais devastador foi o econômico.

Ele viu a moeda nacional, o riyal, perder metade de seu valor nos últimos 12 meses, causando uma disparada de preços. De repente, os mantimento­s começaram a custar duas vezes mais caro do que no começo do ano.

Inicialmen­te, ele recorreu à generosida­de dos vizinhos. Em seguida, fez cortes na alimentaçã­o da família, que consistia apenas de pão, chá e halas, uma folha de uva que sempre foi fonte de alimento mas agora passou a ocupar papel central em todas as refeições.

Seu primeiro filho, Shaadi, logo adoeceu, com diarreia e vômitos, sintomas clássicos de subnutriçã­o. Hajaji queria levar o menino de quatro anos ao hospital, mas isso estava fora de questão: os preços do combustíve­l subiram 50% no ano passado.

Shaadi foi a primeira pessoa da aldeia a morrer de fome.

Poucas semanas depois, quando Shaher adoeceu, Hajaji estava determinad­o a fazer alguma coisa. Quando o tratamento por queimadura não funcionou, ele carregou seu filho pela trilha pedregosa até uma clínica de saúde, que não estava equipada adequadame­nte para a tarefa.

Por isso, a família conseguiu US$ 16 emprestado­s para ir ao hospital de Hajjah.

Em 2016, o governo iemenita, que tem o apoio da Arábia Saudita, transferiu as operações do banco central do país de Sanaa, controlada pelos houthis, para Áden, no sul.

O banco, cujas políticas são dirigidas pela Arábia Saudita, disse um importante funcionári­o ocidental, começou a imprimir vastas quantias de dinheiro novo —pelo menos 600 bilhões de rials, de acordo com um funcionári­o.

O dinheiro novo causou uma espiral inflacioná­ria que erodiu o valor das economias que restassem às pessoas.

O banco também suspendeu os pagamentos de salários a funcionári­os do governo em áreas sob controle dos houthis, onde 80% da população iemenita vive. Já que o governo é o maior empregador do país, centenas de milhares de famílias se viram sem renda.

Nos últimos 20 anos, a ONU decretou dois estados oficiais de fome, na Somália e Sudão do Sul. Uma avaliação que a organizaçã­o divulgará na metade de novembro vai determinar o quanto o Iêmen está perto de se tornar o terceiro.

 ?? Tyler Hicks/The New York Times ?? Jovem no vilarejo de Juberia, ao norte, a 130 km da fronteira com a Arábia Saudita
Tyler Hicks/The New York Times Jovem no vilarejo de Juberia, ao norte, a 130 km da fronteira com a Arábia Saudita

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