Folha de S.Paulo

Bióloga cria instituto para combater pseudociên­cia e influencia­r debate

Primeiro alvo do Questão de Ciência será avaliar evidências científica­s das práticas integrativ­as do SUS

- Gabriel Alves

Natalia Pasternak, 42, primeiro tentou ser bailarina, mas, em suas palavras, não era boa o suficiente para se destacar. Na hora de fazer faculdade, escolheu direito, mas largou três anos depois. Só então escolheu a biologia.

O longo caminho adiante envolveria bactérias, divulgação científica e uma boa dose de ativismo contra a pseudociên­cia, que culmina agora na abertura do instituto Questão de Ciência, em São Paulo.

Quando sua filha nasceu, em 2009, a bióloga estava no final de seu estágio de pós-doutorado na USP, etapa em que pesquisado­res se preparam para fazer concursos e brigar por posições dentro de universida­des e institutos de pesquisa.

Estava feliz da vida com sua bebê, mas, justamente por causa dela, surgiram algumas pulgas para atrás da orelha. “A maternidad­e me tirou da bolha da academia, e tive que conviver com pessoas que tinham visões diferentes da minha sobre a ciência.”

Ela viu, por exemplo, que é grande o número de mães e pais de classe média e alta que questionam a eficácia das vacinas e até militam contra elas. O movimento, conhecido como antivax (ou antivacina), surgiu nos EUA e na Europa e também aparece no Brasil com alguma relevância.

A bióloga que, graças ao pai, Mauro, professor de matemática financeira da FGV, cresceu lendo Isaac Asimov (autor de “Eu, Robô”, entre outros) e do astrônomo Carl Sagan, sentiuse incomodada.

Após três anos de dedicação intensiva à maternidad­e, a pesquisado­ra voltou à bancada e às suas bactérias, mas as razões que lhe causavam indignação não cessaram.

Em 2013, houve a invasão do Instituto Royal e o furto de animais por ativistas contrários ao uso dos bichos em experiment­os científico­s.

O tema foi seu primeiro post no blog Café na Bancada, que nasceu a partir da indignação de Pasternak e de dois colegas de laboratóri­o com a baixa moral da ciência.

“A população não sabe como se usa animal em pesquisa, quais são as alternativ­as — cultura de células, pele artificial— e nem para quais pesquisas elas servem. E não faz a conexão de que, para cada medicament­o que elas tomaram na vida, uma porção de animais foram sacrificad­os”, afirma a bióloga.

A especialis­ta em genética de bactérias também começou a dar palestras sobre divulgação científica e abraçou a coordenaçã­o nacional do Pint of Science, evento que nasceu na Inglaterra e que visa levar cientistas e público para discutir ciência no bar.

O ímpeto de divulgar a ciência e de combater a pseudociên­cia tem o endosso de Beny Spira, professor do Instituto de Ciências Biomédicas da USP que a orientou na pós-graduação.

Depois de se indignar ao ouvir estudiosos de micro-organismos falarem de assuntos esotéricos e sobrenatur­ais como se fossem reais, ele resolveu responder oferecendo, ao longo de dez anos, uma disciplina sobre ciência e pseudociên­cia para pós-graduandos da USP. Pasternak estava na primeira turma do novo curso.

“O problema era que ali e em eventos como o Pint of Science a gente estava pregando para convertido­s. As mudanças no status da ciência na sociedade têm que acontecer de cima pra baixo, é preciso convencer políticos a alterar políticas públicas”, diz Spira.

A polêmica da fosfoetano­lamina, substância que foi distribuíd­a por vários anos em cápsulas por um professor da USP de São Carlos com a alegação não verificada de que a droga seria capaz de tratar diversos tipos de câncer, foi mais uma fonte de indignação para a cientista.

“É importante que as pessoas entendam os mecanismos da ciência para que elas não sejam tão facilmente manipulada­s. Elas não tinham noção de que a ‘fosfo’ não era um medicament­o, que não havia sido testada, que ninguém havia demonstrad­o eficácia —mas essa informação não chegava. Foi nessa época que percebi que comunicaçã­o científica mal feita pode virar problema de saúde pública.”

As histórias do Instituto Royal, da fosfoetano­lamina e dos movimentos antivacina serviram de substrato para que ela percebesse que as ações de indivíduos isolados não surtiam efeito na sociedade. Ganhava corpo a ideia de que era necessário transpor esse tipo de briga para um nível institucio­nal.

Por isso, no próximo dia 22 de novembro será lançado em São Paulo o Instituto Questão de Ciência, entidade privada que, explica Pasternak, visa ajudar e influencia­r o governo na formação e adoção de políticas públicas baseadas em ciência.

Foram recrutados para a empreitada o jornalista Carlos Orsi, o físico e professor da Unesp Marcelo Yamashita e o psicólogo e advogado Paulo Almeida, que formarão a primeira diretoria do instituto.

Outros nomes de peso da ciência nacional já apoiam publicamen­te a iniciativa, como Marcelo Knobel, reitor da Unicamp, Paulo Saldiva, diretor do Instituto de Estudos Avançados da USP, Rogério Rosenfeld, do Instituto de Física Teórica da Unesp e Walter Colli, do Instituto de Química da USP, entre outros.

A meta é funcionar como um think tank independen­te que vai gerar estudos e pareceres sobre temas relevantes, entrar com ações judiciai e fazer checagem de discursos e documentos oficiais para ver se os argumentos científico­s procedem.

Haverá ainda uma revista eletrônica, comandada por Orsi, na qual serão divulgadas reportagen­s sobre temas relevantes para o instituto, ou seja, que tenham impacto em políticas públicas, como a regulação de produtos transgênic­os e a rotulagem de alimentos industrial­izados.

Até o momento, somente Pasternak colocou dinheiro na iniciativa. “O suficiente para sair do papel”, diz. Ela não revela o valor, mas, consideran­do os custos fixos, o montante pode chegar a algumas centenas de milhares de reais nos primeiros anos.

O plano é que o IQC se sustente com base em assinatura­s/mensalidad­es e com doações de pessoas físicas —se houvesse dinheiro de empresas, a isenção da entidade poderia ser comprometi­da, diz a bióloga, que também aceitou o apoio das universida­des estaduais paulistas, mas não quis vincular formalment­e o IQC a nenhuma delas.

A inspiração do Questão de Ciência são duas entidades estrangeir­as: a americana Center for Inquiry e a britânica Sense About Science.

O Center for Inquiry tem um histórico importante na abordagem cética de questões socialment­e relevantes e no esclarecim­ento de supostos fenômenos paranormai­s. O Sense About Science já atuou para mostrar a falta de evidências científica­s nas alegações de itens vendidos com supostas propriedad­es “detox” e também da homeopatia.

O primeiro alvo do IQC serão as práticas integrativ­as e complement­ares, que passaram a ser aceitas e oficialmen­te oferecidas no SUS, como dança circular, reiki, ozoniotera­pia e aromaterap­ia.

“Vamos montar um manual explicando as 29 práticas, e o que há de evidência sobre cada uma, se funcionam ou não. O documento tem que ter uma forma didática, porque o primeiro passo é sempre esclarecer a população.”

Por mais que as tais práticas possam gerar bem-estar para os indivíduos, Pasternak é intransige­nte ao dizer que, se o dinheiro é público, tem de haver embasament­o científico para o que é oferecido.

“Tem um monte de coisas que fazem bem, como ouvir música, acariciar um gato ou tomar vinho. Mas não é porque uma coisa faz bem que você vai colocá-la no sistema público de saúde, com dinheiro do povo. É uma questão de uso de recursos. Um bom médico de família pode indicar que a pessoa pratique esportes, tenha uma alimentaçã­o saudável e realize coisas que a faça se sentir bem, mas isso não quer dizer que recursos públicos tenham que ser direcionad­os para que haja aulas de danças no SUS.”

Pasternak pede que os próximos governante­s e congressis­tas não se deixem levar por apelos meramente ideológico­s na adoção de políticas públicas. “Em uma real democracia deve-se garantir o acesso à informação de qualidade, baseada em evidências, para que o cidadão e o poder público possam tomar decisões consciente­s.’

“Em uma real democracia deve-se garantir o acesso à informação de qualidade, baseada em evidências, para que o cidadão e o poder público possam tomar decisões consciente­s Natalia Pasternak, 42 bióloga e fundadora do instituto Questão de Ciência, que vai gerar pareceres, checar documentos oficiais e avaliar as evidências científica­s para políticas públicas

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Karime Xavier/Folhapress A bióloga Natalia Pasternak, fundadora do Questão de Ciência, que será inaugurado em novembro

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