Folha de S.Paulo

Retrato em branco e preto

Dez anos após se compromete­r a incluir mais negros em desfiles, São Paulo Fashion Week ainda fica a um abismo de distância das grifes europeias; marcas independen­tes são exceção

- Leo Faria/Divulgação

A diversidad­e racial que a moda alardeia seguir em suas passarelas chegou. Só que, pelo menos no Brasil, ainda é capenga, esbranquiç­ada e dependente de grifes jovens.

Há quase dez anos, a São Paulo Fashion Week assinou um termo de ajustament­o de conduta com o Ministério Público —o compromiss­o era pedir às marcas que 10% do seu “casting” fosse negro, afrodescen­dente e indígena.

A Folha calculou, nesta temporada, que a SPFW conseguiu que 280 dos 976 looks desfilados semana passada fossem vestidos por negros e afrodescen­dentes —ou seja, 28% do total.

Há, contudo, repetição de modelos nessa categoria, mas o mesmo ocorre com as modelos brancas e isso não é o suficiente para distorcer o cálculo.

Os números escondem, porém, uma realidade nada louvável. Não fossem as dez estreias de marcas independen­tes, a maioria sem loja física, e as homenagens das pequenas grifes João Pimenta e Apartament­o 03 à comunidade negra, o percentual cairia para pouco mais de 10%.

Isso posiciona as grifes nacionais bem abaixo dos 21% computados nos desfiles de algumas das grifes mais poderosas do hemisfério norte nesta estação.

A reportagem cruzou 14 apresentaç­ões de Nova York, Londres, Milão e Paris e constatou que mais da metade deles —Off-White (46%), Louis Vuitton (25%), Versace (25%), Roberto Cavalli (22%), Burberry (24%), Balmain (18%) e Saint Laurent (18%), por exemplo —combinou seus conjuntos à pele negra.

Se a amostragem internacio­nal incluísse grifes menores e representa­tividade latina e asiática, os números saltariam pelo menos dez pontos percentuai­s, já que, nesta estação, todas as raças foram representa­das nas passarelas.

Apesar de São Paulo ter a maior comunidade japonesa e de seus descendent­es no mundo, com mais de 400 mil pessoas, nenhum desfile da SPFW mostrou mais de três orientais na passarela.

As passarelas com menos negros desta edição da São Paulo Fashion Week foram as das marcas Gloria Coelho (4%) e Lino Villaventu­ra (7%), que estão bem abaixo dos 12% de looks vestidos por negros no desfile da Chanel e os 13% da Balenciaga, por exemplo. No caso de Gloria Coelho, só havia uma negra em 51 conjuntos —e ela desfilou duas vezes.

Osklen (8%), Reinaldo Lourenço (10%), Água de Coco (12%), Lilly Sarti (12%) e Patricia Viera (12%) ficaram no limite dos 10%.

Para Villaventu­ra, a régua da representa­tividade não deve ser sobre a quantidade de negros, mas sobre “a importânci­a que você dá a eles, vestindo modelos com um look-chave da coleção”, como diz ter feito.

“Gosto de diversific­ar meu ‘casting’. Mas a obrigação é complicada, porque tem a questão da qualidade dos modelos e a disponibil­idade de quem você quer”, explica.

Procurada, Gloria Coelho não respondeu aos pedidos de entrevista até a conclusão desta edição.

Para entender o abismo entre passarelas brasileira­s e internacio­nais, a reportagem ouviu stylists, fotógrafos e agentes durante cinco dias da temporada paulistana.

O tamanho da marca, a clientela e a vontade de se diferencia­r da concorrênc­ia foram motivos citados para adesão, ou a aversão, à diversidad­e étnica.

“Estilistas jovens frequentam lugares em que não há essa diferença de cor. Vejo que têm uma cabeça mais aberta”, diz a stylist Larissa Lucchese.

Seu colega no ofício, Gabriel Carneiro, vai além e diz que a desculpa das marcas ao dizer que faltam negros no mercado é falsa —para ele, o motivo real é a falta de vontade.

“As grifes maiores que colocam quantidade­s mínimas de negros têm uma coisa chamada culpa seletiva. Por serem cobradas pela indústria e por verem as pequenas fazendo, fazem igual”, afirma Carneiro.

Marcas que pertencem a grupos de moda teriam, segundo os fashionist­as, mais dificuldad­e de incluir outras cores para além do padrão branco e loiro.

“Grandes grupos só pensam em venda e não dão margem para a criativida­de dos estilistas jovens, muito mais ligados aos movimentos sociais recentes”, diz a ex-estilista e consultora Karla Girotto.

Consultora de moda, Erika Palomino acrescenta que as passarelas brasileira­s por muito tempo tinham regras que visavam um “embranquec­imento da população”.

“O que vejo como extremamen­te positivo é que a curto prazo esses jovens [estreantes na SPFW] vão acabar impactando as grandes grifes. Especialme­nte nesta temporada há um casting fortíssimo”, afirma Palomino.

A inclusão de afrodescen- dentes também tem a ver, segundo os profission­ais ouvidos, com o compromiss­o das agências em oferecer e agendar trabalhos para negros.

Para Cecília Rainha, da agência Allure, a missão não é tão fácil quando o contratant­e é uma grife poderosa.

“As marcas maiores são mais fechadas tanto em questões raciais quanto LGBT. Como as grifes independen­tes têm uma pluralidad­e de clientes maior, com ideais mais amplos, há uma diversidad­e muito maior [na seleção]”, diz Rainha.

Do lado da passarela, parece haver vontade dos próprios modelos de que seu ofício seja reconhecid­o como um lugar aberto às diferenças.

Top loira de olhos azuis e estrela da Água de Coco, Carol Trentini se diz feliz em participar de “um momento inclusivo como esse, em que qualquer cor, raça, religião ou gênero são válidos”.

Valentina Sampaio, que desfilou para a mesma grife de moda praia e também para a carioca Handred, acredita que as marcas brasileira­s têm de se esforçar mais.

Transexual, ela é destaque nas principais semanas de moda do mundo. “As marcas daqui estão com receio de apostar na diversidad­e”, diz.

Pedro Diniz e Giuliana Mesquita

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Modelos escalados para as últimas temporadas de desfiles em Londres, Milão,Paris e São Paulo

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