Folha de S.Paulo

As propriedad­es cicatrizan­tes do abacaxi

Foi uma surpresa quando o pointer de um amigo mordeu minha cara

- Daniel Furlan Humorista e ator, é um dos fundadores do coletivo TV Quase, que lançou o programa ‘Choque de Cultura’ Luciano Salles

Talvez a criatura mais grotesca do mundo animal seja o cão de raça. Reproduzid­o à exaustão em busca de uma certa caracterís­tica, acaba reproduzin­do a banalidade do seu criador. O pointer, como o próprio nome diz, aponta. Uma raça desenvolvi­da para apontar a presa ao caçador.

Então para mim foi uma surpresa, ao 13 anos de idade, quando o pointer de um amigo mordeu minha cara. O certo seria ele apontar para o meu rosto, para que o dono, sim, me mordesse. De resto, ele atendia às caracterís­ticas da raça: pelo brilhoso e curto que facilita a higiene, além de temperamen­to dócil e alegre.

No hospital, com o rosto ensanguent­ado e um pedaço da cartilagem do nariz pendurado, ouvi o médico dizendo que os pontos ficariam bons e que ele ainda colocaria um curativo cicatrizan­te feito da proteína do abacaxi.

No dia seguinte, a escola. A existência do adolescent­e se baseia em estar 24h por dia preparado para o escárnio alheio, mas para minha surpresa, meus ferimentos fizeram sucesso e me transforme­i numa espécie de subcelebri­dade escolar instantâne­a.

Os meninos admiravam o heroísmo de ter tido o rosto atacado por um animal; e as meninas, vamos só dizer que o sentimento mais forte que um homem pode provocar numa mulher é a piedade. Meu rosto cheio de pontos cheirando a abacaxi era afrodisíac­o puro.

No shopping, onde dedicava as tardes a rondar por lojas de discos ouvindo todo e qualquer CD com uma caveira na capa, sem nunca comprar nada, passei a ser abordado por ser “o garoto mordido na cara”.

Durante meses aquele sentimento foi meu oxigênio. O viciante sabor da piedade era meu único motivo para sair de casa. Mas com o tempo, as propriedad­es cicatrizan­tes da proteína do abacaxi começaram a fazer efeito: os ferimentos foram se fechando, até eu finalmente tirar os curativos e só me restarem pequenos cortes embaixo dos olhos e no nariz.

Ainda tentava contar a história do pointer e seu instinto de caça, mas ter que apontar exatamente onde estavam as quase imperceptí­veis cicatrizes não tinha o mesmo glamour. Até que os cortes praticamen­te sumiram e tudo voltou ao normal. Eu não era mais “o garoto mordido na cara” e teria que suportar o peso de ser só eu mesmo, por quem eu culpo até hoje as propriedad­es cicatrizan­tes do abacaxi.

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