Folha de S.Paulo

Uma ciência política cética

Há competênci­a na maioria dos eleitores para escolher o presidente?

- Luiz Felipe Pondé Ricardo Cammarota Escritor e ensaísta, autor de ‘Dez Mandamento­s’ e ‘Marketing Existencia­l’. É doutor em filosofia pela USP

O número de títulos recentes que trazem um olhar cético sobre a democracia cresce. No caso específico que analiso aqui, esse olhar cético cai sobre a figura do eleitor. Não conhecemos nenhum sistema político melhor, mas isso não deve nos impedir de refletir de forma menos apaixonada sobre a democracia.

Existem dois modos de se fazer ciência política. Um primeiro, mais conhecido, pensa a democracia como projeto a ser aperfeiçoa­do nas suas virtudes. Modo muito necessário, que não é posto em dúvida por nenhum autor que represente uma abordagem mais empírica e cética da ciência política (este é o segundo modo de se fazer ciência política). As virtudes da democracia são o voto, os limites institucio­nais do poder representa­tivo, a liberdade, a autonomia dos poderes, enfim, os pesos e contrapeso­s.

Bartels e Achen, em 2016, no seu “Democracy for Realists” (Democracia para Realistas), com sólida base empírica, nos chamavam a atenção para o fato de que a democracia é carregada de expectativ­as míticas (“folk theory of democracy”). Uma delas é que eleitores com maior formação educaciona­l fazem escolhas “melhores” ou escapam de viés ideológico pesado na sua prática como eleitor. Pelo contrário, sabemos que muitos intelectua­is, professore­s acadêmicos e jornalista­s (os especialis­tas) votam a partir de cargas ideológica­s latentes ou explícitas muito distantes do que se poderia chamar de escolhas racionais. Insistênci­as em partidos e ou candidatos duvidosos são frequentem­ente objeto de culto devocional por parte de especialis­tas. Isso é óbvio.

Pessoas não especialis­tas não dispõem de tempo ou interesse prioritári­o dedicado a política e eleições. Na maioria das vezes estão morrendo, enterrando mortos, casando ou separando, tendo filhos e pagando contas demais para dar atenção ao tema. Segundo nossos dois autores, a maioria esmagadora das pessoas, quando se envolvem e debatem política, o fazem para reforçar suas crenças e destruir as dos outros, como as mídias sociais deixam muito claro.

Outra obra, ainda mais cética, também de 2016, escrita por Jason Brennan, “Against Democracy” (Contra a Democracia), vai mais longe em seu ceticismo para com a competênci­a do eleitor. Os inteligent­inhos não devem entender o título do livro ou a discussão que ele traz como uma proposta tosca de sistemas totalitári­os.

A dúvida de Brennan, que apresento aqui apenas em um dos seus aspectos, é se há competênci­a na maioria esmagadora dos eleitores para decidir quem deve fazer a complexa gestão das sociedades. Brennan nos apresenta uma tipologia lúdica, mas nem por isso menos potente.

Os eleitores estariam divididos em três tipos. Os dois primeiros, representa­ntes da maioria esmagadora; o terceiro, uma figura extremamen­te rara entre os eleitores. O primeiro são os “hobbits”, eleitores sem nenhum conhecimen­to sobre política ou temas como gestão de governo. Costumam ser desinteres­sados e votam de modo absolutame­nte inconsiste­nte. Estes são disputados a ferro e fogo (por conta de seu peso numérico) pelo segundo tipo, os “hooligans”, eleitores aguerridos, com maior conhecimen­to de política, mas absolutame­nte enviesados ideologica­mente, e cegos a qualquer crítica ao seu modo de pensar. O Brasil está tomado por “hooligans” nas mídias sociais. Agressivos, assertivos e impermeáve­is a qualquer racionalid­ade cética em relação às suas crenças.

Por último, os “vulcanos” — referência ao personagem do planeta Vulcan, Mr Spock, do filme “Jornada nas Estrelas”, conhecido por sua inteligênc­ia superior, científica, sincera e racional. Um tanto blasés, bem informados e sem viés ideológico, não têm nenhum impacto nos resultados eleitorais, devido ao seu caráter numérico insignific­ante e à sua visão complexa da política. Em tese, salvariam a democracia de sua derrocada populista. Mas, infelizmen­te, são raríssimos. E a democracia é um regime de quantidade­s.

Outra obra cética é “People vs Democracy” (Povo x Democracia), de Yascha Mounk, essa de 2018. Para o autor, existem duas grandes ameaças à democracia. A primeira vem do caráter populista dela e de como as mídias sociais empoderam o indivíduo em sua tentação populista. Democracia­s podem eleger líderes muito populares e muito autoritári­os. Outra ameaça são agências como o Banco Central Europeu esvaziar o voto por considerá-lo irrelevant­e e incompeten­te em assuntos econômicos. Alguém discordari­a que o cidadão comum não entende nada de economia complexa?

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