Folha de S.Paulo

Carta para a segunda-feira

Posso já estar com saudades da incerteza de 72 horas atrás

- Ronaldo Lemos Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro

Daqui de sexta-feira passada, aproveito para mandar uma mensagem para você que está lendo este texto na segunda-feira.

Ainda não sei quem é o novo presidente da República, nem o novo governador de São Paulo ou de Minas Gerais. Não sei se a eleição transcorre­u com tranquilid­ade, se a apuração foi encerrada, ou se temos um vencedor proclamado. Mais do que isso, não sei se o resultado foi aceito pelos derrotados.

Neste momento, sou um ignorante. Muitos dos que me leem podem até invejar essa situação. Eu mesmo posso já estar com saudades da incerteza de 72 horas atrás.

Em um momento tão importante como este no Brasil, não consigo pensar em nenhum outro tema que não seja o provérbio chinês “Sài wēng shī mă yān zhī fēi fú” (“O ancião Sài perde o cavalo, como saber se é bom ou ruim?).

Esse provérbio faz parte do conjunto de textos conhecidos como Huainanzi, datado de antes de 139 a.C. São textos até hoje muito populares, que mesclam diversas correntes de pensamento, incluindo o taoismo e confucioni­smo.

Esse provérbio conta a história de um ancião que habitava a fronteira norte da China, perto da Grande Muralha. Um belo dia, seu único cavalo fugiu e acabou indo parar no lado inimigo da fronteira, onde atualmente é a Mongólia.

Naquele tempo, um cavalo consistia no bem mais valioso que uma pessoa poderia ter. Em razão disso, os vizinhos do ancião pensaram todos que aquele era um grande infortúnio e foram consolá-lo. No entanto, o ancião se mostrava impassível, limitando-se a dizer: “Não sei se é bom ou ruim”.

O tempo passou e, sem que ninguém esperasse, o cavalo reapareceu acompanhad­o de uma égua, que logo deu à luz um potro.

O ancião agora tinha três animais. Todos os vizinhos foram então dar parabéns ao ancião, que, de novo, limitouse a dizer: “Não sei se é bom ou ruim”.

Mais tempo passou, e o filho do ancião aprendeu a andar a cavalo. Em uma certa tarde, ao cavalgar, sofreu um grave acidente e fraturou o fêmur. Na época, sem recursos médicos, isso significav­a que estaria condenado a não andar mais por toda a vida.

De novo, diante da preocupaçã­o dos vizinhos, o ancião limitou-se a dizer: “Não sei se é bom ou ruim”.

Um ano se passou, e uma violenta guerra teve início com o Norte. Todos os jovens da aldeia foram obrigados a lutar contra o exército inimigo. Por sua condição física, o filho foi poupado de se alistar. A guerra foi devastador­a, e nove entre dez jovens aldeões morreram.

Diante do olhar comovido dos vizinhos sobreviven­tes, de novo o ancião limitouse a dizer: “Não sei se é bom ou ruim”.

O Huainanzi, curiosamen­te, foi escrito como uma espécie de tratado de governo. Seus textos foram dados de presente ao jovem imperador Wu, então com 15 anos, com o objetivo de lhe servir como guia e manual de conduta.

Apesar da aparente indiferenç­a do provérbio “Sài wēng” quanto à questão do que é “bom ou ruim”, o Huainanzi não é neutro. Ele prenuncia maus augúrios sempre que um governante se distancia do caminho da virtude e da sabedoria.

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