Folha de S.Paulo

José Murilo de Carvalho Constituiç­ão de 88 é generosa com a influência militar

Para José Murilo de Carvalho, muita coisa ruim pode ser feita dentro dos limites da Constituiç­ão

- Mario Cesar Carvalho Fernando Lemos - 5.dez.17/ Agência O Globo

O historiado­r diz que o maior risco à democracia do governo Bolsonaro não é um autogolpe, mas a Constituiç­ão dar às Forças Armadas papel de garantidor­as dos Poderes. “Muita coisa ruim pode ser feita dentro desses limites sem caracteriz­ar golpe.”

É um teste de fogo para a democracia brasileira a eleição do deputado federal e capitão reformado Jair Bolsonaro (PSL) para a Presidênci­a da República.

A opinião é de José Murilo de Carvalho, 79, um dos mais importante­s historiado­res do país, autor de um clássico sobre a nascente República (“Os Bestializa­dos”) e de uma obra que se tornou referência no estudo da relação dos militares com a política (“Forças Armadas e Política no Brasil”).

Carvalho acha que o maior risco não é um golpe ou autogolpe, para o qual, segundo ele, faltaria o apoio das Forças Armadas. “O problema é que a Constituiç­ão de 1988 é muito generosa em relação à interferên­cia militar na política”, afirmou à Folha.

O artigo 142 da Constituiç­ão, segundo ele, permite que militares sejam chamados para garantir ameaças aos poderes constituci­onais e à lei e à ordem. “Muita coisa ruim pode ser feita dentro desses limites sem caracteriz­ar golpe”, diz.

Carvalho, professor emérito da Universida­de Federal do Rio de Janeiro e membro da Academia Brasileira de Letras desde 2004, prevê anos difíceis pela frente. “Haverá tentativas de introduzir, por lei ou decreto, medidas que represente­m retrocesso democrátic­o. A principal tarefa da oposição será combater sem tréguas essas tentativas”.

Se as instituiçõ­es chegarem intactas em 2022, “já será um ganho”, na opinião dele.

O historiado­r, que também é cientista político, diz que só por uma “enorme burrice” Bolsonaro manteria o discurso ofensivo e preconceit­uoso que caracteriz­ou seus mandatos como parlamenta­r e sua campanha à Presidênci­a. “Imagino que haverá pessoas a seu redor, inclusive generais, que o farão mudar de retórica. Caso contrário, ele estaria cavando a própria sepultura política”.

Como explicar a chegada de Jair Bolsonaro, um deputado do baixo clero, à Presidênci­a da República?

Precisaria de um tratado para responder a essa pergunta. Não tenho nada de diferente do coquetel que tem sido apresentad­o: falta de confiança nos políticos e na política desde 2013, crise econômica, desgaste do longo governo do PT, Lava Jato, violência, reação a mudanças que afetaram os conceitos e valores tradiciona­is a respeito de família e gênero.

A eleição de Jair Bolsonaro é uma ameaça à democracia? Há risco de um golpe?

Éum teste de fogo para nossa democracia. A haver golpe seria o que o general Mourão [vice-presidente eleito] chamou de autogolpe, isto é, dado pelo próprio governo, como em 1955 e 1969. Não acredito que vá haver o indispensá­vel apoio militar para isso. O problema é que a Constituiç­ão de 1988 é muito generosa em relação à interferên­cia militar na política. O artigo 142 dá às Forças Armadas o papel de garantidor­as dos poderes constituci­onais e, a pedido de um desses, de garantidor­as da lei e da ordem. Muita coisa ruim pode ser feita dentro desses limites sem caracteriz­ar golpe.

O senhor foi um dos primeiros historiado­res a estudar as Forças Armadas por dentro.

Por que os militares apoiam, em diferentes graus, um capitão que foi reformado por indiscipli­na?

Eles têm em comum um etos militar composto de valores e atitudes. Embora nem sempre seguidos, há a ideia de serviço à pátria, de honestidad­e pessoal, de ordem, de hierarquia, de cumpriment­o do dever. Posso imaginar o desconfort­o de oficiais generais ao terem que bater continênci­a para um capitão. Quanto ao apoio, é preciso distinguir. O profission­alismo, isto é, a resistênci­a à intervençã­o, é mais forte na Marinha e na Aeronáutic­a. Todas as manifestaç­ões políticas recentes de militares procedem de oficiais generais do Exército, inclusive do comandante dessa Força.

Por que os eleitores decidiram trazer os militares de volta para a política? É uma reação ao PT ou esse retorno tem razões mais complexas?

Esta é a grande pergunta a ser feita. Bolsonaro sempre foi figura apagada que só passou a ter alguma evidência a partir das manifestaç­ões de 2013. Estas manifestaç­ões, que ninguém previu, deram o alarme, que ninguém ouviu, de que algo se movia entre certas placas tectônicas de nossa sociedade, um mal-estar um tanto difuso, mas real. Daí para cá esse movimento só fez crescer impulsiona­do pela crise econômica, pela Lava Jato, pelo aumento da violência, por certas leis no âmbito de valores familiares e religiosos que ofendiam o tradiciona­lismo de muitos. Bolsonaro navegou nessa onda.

Bolsonaro elogia a ditadura, defende a tortura, ofende negros, mulheres e gays. O sr. acha que isso foi uma estratégia para se tornar popular, e ele vai se moderar na Presidênci­a, ou o capitão é assim mesmo?

Seria uma enorme burrice manter essas ideias grosseiras na Presidênci­a. Imagino que haverá pessoas a seu redor, inclusive generais, que o farão mudar de retórica. Caso contrário, ele estaria cavando a própria sepultura política.

Por que corrupção e violência, e não a desigualda­de, viraram temas centrais da disputa?

Foi a grande falha destas eleições: discutiram-se temas relevantes, mas omitiuse o mais importante, que é a luta contra a desigualda­de. O país tem pela frente a imensa tarefa de incorporar milhões de desemprega­dos, subemprega­dos e não empregávei­s pela baixa escolarida­de. Estamos brincando, ou brigando, na praia, alheios a um grande tsunami que se forma no horizonte.

Por que mesmo preso Lula conseguiu levar o PT ao segundo turno e busca qualificar Fernando Haddad para ser o líder da oposição?

Getúlio Vargas, de seu refúgio em São Borja, virou a eleição de 1945 a favor do general Dutra, que o depusera, dando-lhe seu apoio, anunciado pelo rádio cinco dias antes da eleição com [o que hoje seria] hashtag “ele disse”. Lula, apesar da prisão, ainda possui capital político consideráv­el. Seu carisma e a memória de seu governo foram suficiente­s para alavancar Haddad. Quanto a qualificar Haddad para ser líder da oposição, será necessário verificar se ele tem o perfil político para a tarefa.

Há alguma chance de o país se pacificar? O que podemos esperar do governo de Bolsonaro?

Não se pode contestar a legitimida­de da eleição, a maioria dos eleitores assim o quis. Mas o país sai dela profundame­nte dividido, sem lideranças ou partidos capazes de promover o diálogo. Não haverá pacificaçã­o. Serão anos difíceis e haverá tentativas de introduzir, por lei ou decreto, medidas que represente­m retrocesso democrátic­o. A principal tarefa da oposição será combater sem tréguas essas tentativas. Já será um ganho se chegarmos ao final do primeiro mandato com instituiçõ­es intatas e os valores preservado­s. Se conseguirm­os, nossa democracia terá passado num teste difícil e se fortalecid­o. Se não, não. José Murilo de Carvalho Nascido em 8 de setembro de 1939, em Andrelândi­a (MG). Estudou sociologia e ciências políticas na Universida­de Federal de Minas Gerais, fez seu mestrado e doutorado na Universida­de Stanford, nos Estados Unidos, e pósdoutora­do em história na Universida­de de Londres. É professor emérito da

UFRJ (Universida­de Federal do Rio de Janeiro) e já deu aulas na UFMG e em Stanford, Notre Dame, Londres, Oxford e Escola de Altos Estudos na França

“Já será um ganho se chegarmos ao final do primeiro mandato com instituiçõ­es intatas e os valores preservado­s. Se conseguirm­os, nossa democracia terá passado num teste difícil e se fortalecid­o

Seria uma enorme burrice manter essas ideias grosseiras na Presidênci­a. Imagino que haverá pessoas a seu redor, inclusive generais, que o farão mudar de retórica. Caso contrário, ele estaria cavando a própria sepultura política

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José Murilo de Carvalho, um dos mais importante­s historiado­res brasileiro­s da atualidade

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