Folha de S.Paulo

Discordant­es terão tarefa de escutar e resistir

- Pablo Ortellado Professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia. Escreve às terças po.ortellado@gmail.com

O pior aconteceu. Um candidato com posições muito extremas, que fez seguidas declaraçõe­s desprezand­o os direitos humanos, defendendo as execuções extrajudic­iais, desprezand­o o Congresso, combatendo a independên­cia dos poderes, atacando a liberdade de imprensa e que, além de tudo, ofendeu mulheres, negros e homossexua­is —esse candidato, com a plataforma mais abominável, foi eleito presidente, pelo voto.

Há duas tarefas para aqueles que discordara­m da eleição de Bolsonaro: escutar e resistir. Parece contraditó­rio propor simultanea­mente escutar e resistir, mas os objetos são diferentes —é preciso escutar os eleitores e é preciso fazer oposição ao governo.

Sem dúvida, a tarefa mais desafiador­a é escutar. Aqueles que estão perplexos com essa eleição já se deram conta, a esta altura, de que perderam contato com a base da sociedade.

Muitas vezes, porém, queremos refazer esse vínculo, mas com o intuito exclusivo de que seja a sociedade a nos escutar. Queremos influencia­r, mas não queremos ser influencia­dos de volta.

Para estabelece­r esse contato, será preciso começar a falar para um público que não dá atenção aos professore­s, aos jornalista­s, aos artistas e aos ativistas e que nos trata, com alguma razão, como uma elite progressis­ta arrogante.

Se quisermos, com humildade, estabelece­r essa interlocuç­ão, vai ser preciso, na mesma medida em que buscamos transformá-la, nos deixarmos transforma­r por ela.

Vamos ter que gastar menos energia nos tornando mais puros e, assim, cada vez mais diferentes e mais destacados da sociedade e atacar os problemas de desigualda­de e opressão que nos afligem segundo os modos, as ênfases e as prioridade­s da maioria das pessoas que os vivem.

Simultanea­mente a essa tarefa, é preciso fazer oposição democrátic­a ao governo Bolsonaro a partir do primeiro dia.

Sem dúvida, as declaraçõe­s de Bolsonaro e de seus colaborado­res mais próximos puseram no horizonte que os limites constituci­onais podem não ser respeitado­s. Mas entre colocar no horizonte e fazer há ainda certa distância. E é dever da oposição não colaborar para consolidar o imaginário autoritári­o.

Neste momento, é preciso como nunca fortalecer a imprensa, o Judiciário, o Ministério Público, as ONGs e a sociedade civil, garantindo sua independên­cia e seu caráter permanente­mente vigilante.

Apenas essa combinação de força das instituiçõ­es e vigor da sociedade podem garantir que Bolsonaro não governe atropeland­o as regras, como fizeram Duterte, Maduro ou Erdogan, mas seja constrangi­do e limitado como, de alguma maneira, têm sido Trump e os populistas de direita na Europa.

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