Walter Salles vê país em período oposto ao de ‘Central do Brasil’, filme que faz 20 anos
Nos 20 anos do lançamento, ‘Central do Brasil’ ganha sessão de cópia restaurada na Mostra de SP e reflete país que já não existe
Lançado no país em abril de 1998, o filme “Central do Brasil” selou o prestígio do cinema que renascia após o desmonte da era Collor. Carregado de emotividade, veio na contramão do cinismo de Tarantino e afins que marcou a década, e espelhou uma nação que voltava a se abrir após décadas de autoritarismo e crise econômica.
Dora, a aposentada ressentida de Fernanda Montenegro, personificava um povo que readquiria sensibilidade. No Brasil de Bolsonaro, ela se debateria com a amargura da qual se redime e que a obra tinha por superada, crê o diretor do filme, Walter Salles.
“O que torna a situação atual mais grave é o contínuo ataque à democracia feito durante a campanha, o incentivo generalizado à violência, a tudo que é diferente da estrábica ideologia da ultradireita”, diz o carioca de 62 anos.
O longa terá sua versão restaurada exibida hoje à noite, na programação da Mostra de Cinema de SP, com a presença do cineasta, dos atores e da equipe técnica.
A história acompanha uma ex-professora que escreve cartas para analfabetos na estação de trem carioca que dá nome ao longa —cartas que ela nunca envia. Relutante, a mulher parte rumo ao interior do Nordeste para acompanhar Josué (Vinícius de Oliveira), menino que perdeu a mãe e deseja conhecer o pai.
“A trajetória de Dora é, antes de tudo, de ‘ressensibilização’. É contra o passado e as perdas afetivas que teve durante esses anos que ela se insurge”, afirma Salles. Já a busca do órfão Josué, o “reflexo possível” do Brasil que surgia durante o governo FHC.
“Central” foi oportuno. Deu a chancela que faltava aos filmes da retomada. Estreou em Sundance, levou o Urso de Ouro e prêmio de interpretação para Fernanda no Festival de Berlim. No ano seguinte, representou o Brasil no Oscar com indicações de melhor fil- me estrangeiro e melhor atriz —última vez que o país disputou nessas duas categorias.
Hoje aos 33, Vinícius era um garoto que engraxava sapatos no aeroporto Santos Dumont, no Rio, onde topou com o cineasta. Somou-se aos não atores que fizeram figuração no filme e deram um aspecto quase documental à obra, grande parte devido à direção de fotografia de Walter Carvalho, num registro do Brasil profundo que não se via desde o cinema novo, dos anos 1960.
“Havia um desejo de reinvenção do país que era essencialmente inclusivo. Me parece que estamos no polo oposto dessa possibilidade hoje.”
O diretor compara a eleição de Bolsonaro ao filme “O Ovo da Serpente”, de Bergman, que tem como pano de fundo a Alemanha destroçada dos anos 1920 e que gestava o antissemitismo nazista.
“A vitória de Bolsonaro é o maior retrocesso vivido desde o final da ditadura militar”, diz. Já o êxito de João Doria na eleição para o governo paulista o remete a “O Conformista”, de Bertolucci, sobre um sujeito que sai para matar seu antigo professor em nome do ascendente fascismo na Itália. “Fazem parte do mesmo quadro.”
Mas se é a filmografia de Salles que entra na lupa, o filme
Walter Salles cineasta
que mais conversa com o presente é “Terra Estrangeira”, de 1995, sobre brasileiros desesperançosos tentando a vida na Europa. Veio sob o esteio do que o diretor chama de crise “identitária e divisão interna” do começo dos anos 1990.
“[Foi] um período em que as instituições e a sociedade civil foram postas á prova, e resistiram. Prefiro acreditar que o mesmo acontecerá agora.”
Assistir a “Central” 20 anos depois do seu lançamento também levará o espectador a um tempo em que cartas ainda tinham preponderância num Brasil pré-WhatsApp.
Salles diz que há “desregulamentação absoluta” dessas novas mídias, “controladas por um punhado de empresas supranacionais, que não se constrangem em vender informações pessoais”. “É nessa terra de ninguém que nascem as ‘fake news’, decisivas na eleição de Trump e também na eleição brasileira.”
No momento, o cineasta nutre dois novos projetos de ficção. O primeiro, uma adaptação de “Ainda Estou Aqui”, de Marcelo Rubens Paiva, sobre a busca da mãe do autor para desvendar a morte do marido, perseguido na ditadura.
“É um filme sobre a recuperação da memória coletiva, sobre a importância de não esquecer para não repetir os mesmos erros”, define Salles.
Outro projeto recupera o bispo Sardinha, devorado pelos caetés nos primeiros anos da colonização do Brasil e citado no “Manifesto Antropófago”, de Oswald de Andrade, como alegoria do caldo que conforma a cultura nacional.
O diretor diz ser “espantoso” que a ideia do embranquecimento, a “limpeza de sangue” advogada pelos colonizadores, tenha ressurgido nas falas do general Mourão, futuro vice-presidente. “Visto por esse prisma, voltamos 475 anos para trás, e não só 30.”
Central do Brasil
Brasil, 1998. Direção: Walter Salles. Elenco: Fernanda Montenegro, Vinícius de Oliveira. 12 anos. Mostra: ter. (30), às 21h, no Espaço Itaú -Augusta
“O filme que me lembra mais o momento atual é ‘O Ovo da Serpente’, de Bergman. A vitória de Bolsonaro é o maior retrocesso desde o final da ditadura militar