Folha de S.Paulo

No alvo do eleito, Itamaraty espera uma transição turbulenta

- Igor Gielow Marcos Brindicci - 10.set.18/Reuters

são paulo Único órgão de Estado citado nominalmen­te por Jair Bolsonaro em seu pronunciam­ento após a vitória no segundo turno no domingo (28), o Itamaraty se prepara para uma transição que promete criar polêmicas.

“Libertarem­os o Brasil e o Itamaraty das relações internacio­nais com viés ideológico a que foram submetidos nos últimos anos”, disse Bolsonaro. Na mesma noite, o ministro anunciado da área econômica, Paulo Guedes, afirmou que o Mercosul não será prioridade do novo governo.

Tudo isso era conhecido. O agora presidente eleito criticou diversas vezes a promoção de políticas chamadas SulSul, ou seja, com países fora do eixo EUA-União Europeia.

Ela foi bastante marcada na gestão de Celso Amorim no Itamaraty (2003-10), que trazia em seu DNA o não-alinhament­o de Ernesto Geisel (1974-79) e identifica­ção política com o PT do “Nosso Guia”, como ele chamava o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Nos anos Amorim, foi formada uma geração de diplomatas associada a esse ideário. Com a chegada de Dilma Rousseff (PT) ao poder, em 2011, foi ensaiada uma reaproxima­ção com os países ricos.

Sob Michel Temer (MDB), a partir de 2016, o desengajam­ento das políticas petistas foi iniciado e dois políticos tucanos ocuparam a pasta, José Serra e o atual chanceler, Aloysio Nunes Ferreira.

As equipes construída­s sob eles são considerad­as por observador­es como mais equilibrad­as do ponto de vista político e de experiênci­a.

Bolsonaro promete que “recuperare­mos o respeito internacio­nal”. Naturalmen­te, diplomatas associados a gestões anteriores já são vistos com seus cargos ameaçados.

Entre eles estão estrelas como o embaixador do Brasil nos EUA, Sérgio Amaral (que foi ministro de FHC), os exchancele­res de Dilma Mauro Vieira (ONU), Luiz Alberto Figueiredo (Portugal) e Antonio Patriota (Itália), além do exsecretár­io-geral Sérgio Danese (Argentina).

Se a gestão atual já rejeitava o ativismo à esquerda dos anos Amorim, ainda não emergiram os nomes que possam encarnar o bolsonaris­mo nas relações exteriores.

Segundo um outro embaixador importante, há um certo constrangi­mento devido à péssima imagem externa projetada pela mídia internacio­nal do novo presidente.

Isso, claro, irá mudar com a proximidad­e da posse, não menos porque o ministério é um órgão de Estado clássico.

Mas não há candidatos óbvios, por ora, para o cargo de ministro —que pode acabar sendo dado a uma pessoa de fora da hierarquia, como é hoje.

Muito da visão de política externa de Bolsonaro é moldada por nomes como o do general da reserva Augusto Heleno, que foi comandante no Haiti e que está indicado para o Ministério da Defesa.

Acadêmicos como Marcos Troyjo, da Universida­de de Columbia e colunista da Folha, contribuír­am com o programa do candidato na área.

Dentro do Itamaraty, um dos raros bolsonaris­tas explícitos é o diretor do Departamen­to de Estados Unidos e Canadá, Ernesto Araújo.

Mas ele nunca ocupou uma embaixada, algo que equivaleri­a a tornar comandante do Exército um general de patente inferior a quatro estrelas —ou seja, impensável para a praxe da corporação.

Ajustes de política externa à realidade política são naturais. O Mercosul, por exemplo, é avaliado no Itamaraty como um projeto político bem-sucedido, mas uma dor de cabeça econômica.

Assim, frases incendiári­as como a de Paulo Guedes caem mal, mas refletem o pensamento de muitos na estrutura do ministério quando colocadas de forma ponderada.

O mesmo ocorre com a defendida aproximaçã­o maior dos EUA, como contrapont­o ao excessivo peso da China na balança comercial brasileira.

A relação com a Venezuela será delicada. Bolsonaro abomina a ditadura de Nicolás Maduro, mas o fato é que há milhares de refugiados daquele país entrando no Brasil, como parte de uma crise humanitári­a sem precedente­s.

Assim, uma ruptura pura e simples não tem condições de ocorrer. Mesmo com outros regimes esquerdist­as da região, como Cuba e Bolívia, o esfriament­o das relações é o mais previsível.

Mais polêmica será a adesão à ideia de dar mais peso à relação com Israel, em detrimento à histórica neutralida­de brasileira no conflito com os palestinos.

Não foi casualidad­e que Trump e o premiê israelense, Binyamin Netanyahu, estejam entre os primeiros líderes a congratula­r o brasileiro.

Bolsonaro já disse que não reconhecia a Palestina como nação, o que o Brasil fez em 2011, e que poderá mover a embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém —assim como seu modelo, Donald Trump, fez.

A realidade aqui deverá falar mais alto, já que isso poderia trazer retaliação de países muçulmanos para onde 45% da exportação de frango e 40% da de carne bovina do Brasil se dirige, por exemplo.

Também são esperadas reações dos diplomatas mais jovens formados sob Amorim, muitos ocupando postos criados na era Lula em países que poderiam se alinhar ao Brasil em votações de organismos multilater­ais.

Assim como a narrativa de que Dilma sofreu um golpe no impeachmen­t ganhou amplificaç­ão nesse meio, as críticas à imagem de Bolsonaro também estão no radar.

Enquanto tudo isso se desenrola, subsecretá­rios-gerais do Itamaraty já começaram a se reunir para discutir a transição de governo sob todos esses aspectos.

Os encontros começaram nesta segunda (29) e é esperada a interlocuç­ão com o time que tocará o processo pelo lado de Bolsonaro.

“O Brasil deixará de estar apartado das nações mais desenvolvi­das. Buscaremos relações com países que possam agregar valor aos produtos brasileiro­s. Recuperare­mos o respeito Jair Bolsonaro em discurso

 ??  ?? Cartazes colocados por entidade sindical em Buenos Aires com os dizeres ‘tchau, Macri’; medidas de austeridad­e do presidente argentino têm sido alvo de protestos
Cartazes colocados por entidade sindical em Buenos Aires com os dizeres ‘tchau, Macri’; medidas de austeridad­e do presidente argentino têm sido alvo de protestos

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil