Folha de S.Paulo

Controvérs­ia lembra debate sobre impacto de redes sociais em eleições atuais

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A controvérs­ia que se seguiu à transmissã­o de “A Guerra dos Mundos” lembra aquela que acontece, há dois anos, em torno do impacto das plataforma­s de tecnologia nas vitórias do ‘brexit’, de Donald Trump e agora de Jair Bolsonaro.

O New York Times abriu no alto da primeira página: “Ouvintes de rádio entram em pânico, tomando peça de guerra como fato”. E no dia seguinte publicou o editorial “Terror por rádio”, em que alertava: “O rádio é novo, mas tem responsabi­lidades de adulto. Não alcançou controle sobre si mesmo ou o material que utiliza”.

Em 1938, como em 2018, o problema era que o novo meio induzia as pessoas a acreditar em notícia falsa, no caso, um ataque com gás em Nova Jersey, se aproximand­o de Nova York, o que levou “muitos a fugirem de casa” e “inundarem a polícia” com telefonema­s.

Como pano de fundo, na polêmica sobre o programa, estava a percepção de que foi o rádio que alavancou populistas de extrema direita, eleitos democratic­amente, como Hitler. Aliás, atento, o ditador alemão ridiculari­zou a reação dos ouvintes americanos.

Por outro lado, a reportagem do NYT saía falando, na primeira frase, que “uma onda de histeria em massa tomou conta de milhares através da nação”, relato impreciso que acabaria sendo questionad­o –mais ou menos como Trump faz, desde a campanha, com o jornal.

O argumento, para então como para hoje, é que NYT e outros estavam reagindo por interesse próprio à concorrênc­ia da primeira mídia eletrônica, que surgia avassalado­ra, a exemplo da TV duas ou três décadas depois e, mais recentemen­te, das plataforma­s.

Por revelador que seja o debate que sobreveio à transmissã­o, o mais significat­ivo do episódio é a própria peça radiofônic­a. Está quase tudo nela ou, melhor, em Orson Welles, seu protagonis­ta e diretor, então aos 23 anos, mas já um fenômeno do teatro.

Em seu último filme, o documentár­io dramatizad­o “F for Fake” em inglês, “Vérités et Mensonges” (Verdades e Mentiras) em francês, lançado em 1974, ele relembra ironicamen­te “A Guerra dos Mundos”, circunscre­ve seu impacto sobretudo a Nova York, e explica: “O que nós, mentirosos profission­ais, esperamos oferecer como verdade eu receio que a palavra pomposa para isso seja arte. O próprio Picasso falou: A arte é uma mentira. Uma mentira que nos faz perceber a verdade.”

O confronto de realidade e aparência, a atenção à falsidade, é recorrente nos autores teatrais de que Welles era mais próximo, a começar de Shakespear­e, obsessão sua desde a adolescênc­ia e que motivou algumas de suas maiores obras, no palco e na tela.

Outro era George Bernard Shaw. Seis meses antes de “A Guerra dos Mundos”, Welles ocupou a capa da revista Time por dirigir e protagoniz­ar “Heartbreak House”, sátira de Shaw a uma elite que vive em negação, às portas da guerra.

O fascínio pelo atrito entre verdade e mentira, em parte ao menos, levou Welles ao jornalismo, tema da obra-prima “Cidadão Kane”. O personagem-título é inspirado no magnata William Randolph Hearst, do New York World, que à base de notícias falsas havia estimulado os EUA a entrar em guerra com a Espanha, invadindo Cuba.

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