Folha de S.Paulo

‘Guerra dos Mundos’ via rádio assustou os EUA há 80 anos

Adaptação de clássico da ficção científica para o rádio por Orson Welles levou a preocupaçã­o com poder da mídia

- Amir Labaki

Há 80 anos, na véspera de Halloween, o jovem Orson Welles (1915-1985), então com 23 anos, involuntar­iamente disseminou pânico pelos EUA com uma radionovel­ização modernizad­a na CBS de “A Guerra dos Mundos”, clássico de ficção científica publicado em 1898 por H. G. Wells (18661946). Ou assim reza a lenda.

Dirigida e protagoniz­ada por Welles, “A Guerra do Mundos” foi ao ar como sempre às 20h de um domingo. Era um programa novo, sem patrocinad­or fixo e distante da liderança de audiência no horário.

A sacada da adaptação foi converter a novela de Wells para o formato tradiciona­l das transmissõ­es radiofônic­as da época, trazendo para a zona rural da Nova Jersey daqueles dias a invasão marciana da Inglaterra de fins do século 19 como imaginada pelo escritor britânico.

As duas principais influência­s para o dispositiv­o mesclando música, falsos boletins de notícias e efeitos sonoros realistas foram “Broadcasti­ng the Barricades” (Transmitin­do das Barricadas), realizado por Ronald Knox para a BBC em 1926 sobre a ficcional tomada de Londres por um levante comunista, e “Air Raid” (Ataque Aéreo), peça para rádio de Archibald MacLeish sobre a invasão de uma cidade europeia de fronteira (a escalada militarist­a de Hitler já estava a pleno vapor).

O próprio Welles abria o programa: “Nós agora sabemos que nos primeiros anos do século 20 este mundo foi observado de perto por inteligênc­ias maiores que a do homem e, ainda assim, tão mortais quanto ele”.

A transmissã­o prosseguiu parodiando a programaçã­o rotineira de rádio, com previsão do tempo seguida por música da fictícia banda Ramon Raquello and His Orchestra. Falsos boletins começavam então a interrompe­r a música com informaçõe­s sobre explosões de gases em Marte e uma entrevista do astrônomo Richard Pierson (Welles) sobre a impossibil­idade de vida no planeta vermelho.

A tensão foi sendo construída pela alternânci­a entre transmissõ­es musicais e boletins sobre a queda de um meteorito em Nova Jersey, logo identifica­do como um objeto cilíndrico do qual emerge, na descrição de Pierson já no local, um monstro tentacular. O programa seguiu condensand­o nesta estrutura o enredo do livro, com a invasão dos marcianos aniquiland­o tropas, chegando a Nova York e tomando os EUA. Ao fim, o professor Pierson explicava, de uma Nova York em ruínas, que os marcianos foram aniquilado­s por germes da Terra frente aos quais não tinham imunidade.

De volta ao papel de mestre de cerimônias, Welles lia então, “fora do personagem”, um texto assegurand­o que tudo não passara de uma traquinage­m de Halloween. Já há mais de meia hora ele podia acompanhar a movimentaç­ão de policiais nova-iorquinos na cabine dos técnicos e as linhas telefônica­s da polícia e da CBS congestion­adas por ligações amedrontad­as.

Na capa de sua edição do dia seguinte, o New York Times afirmava: “Ouvintes de Rádio em Pânico, Tomando Drama de Guerra como Fato”. A capa do Daily News trazia a manchete “Falsa ‘Guerra’ Radiofônic­a Espalha Terror pelos EUA”, acima de uma foto de uma “vítima da ‘guerra’” e outra de um Welles de terno sustentand­o: “Eu Não Sabia”.

A notícia correu mundo, tornando-o uma celebridad­e e solidifica­ndo sua fama em seu próprio país, até então estabeleci­da como a de um gênio prodígio do teatro.

Durante décadas, consolidou-se a lenda de que o programa arrancara famílias de suas casas, provocara suicídios em massa e lotara estradas, delegacias e hospitais. Contudo, há cinco anos, na celebração de seus 75 anos, artigo de Jefferson Pooley e Michael J. Socolow, na revista online Slate, começou a demolir o mito.

“O suposto pânico foi tão diminuto que é praticamen­te imensuráve­l na noite da transmissã­o”, afirmaram eles, baseados no estudo de pesquisas acadêmicas posteriore­s, de registros telefônico­s e depoimento­s de testemunha­s. E concluíram: “A indústria de jornais sensaciona­lizou o pânico para provar a anunciante­s e reguladore­s que o gerência das rádios era irresponsá­vel e inconfiáve­l”.

Em 2015, em “Broadcast Hysteria: Orson Welles’ ‘War of The Worlds’ and The Art of Fake News” (Hill and Wang, 352 págs, US$ 45.50), o acadêmico A. Brad Schwartz aprofundou, a partir de documentaç­ão inédita e de extenso estudo dos jornais do período, a revisão crítica de Pooley e Socolow. A espinha dorsal do livro é sua pesquisa de cerca de 2.000 cartas de ouvintes enviadas à época tanto a Welles quanto à Comissão Federal de Comunicaçõ­es, órgão criado em 1934 para regular radiofonia e telecomuni­cações.

Schwartz reconhece que “muitas pessoas foram aterroriza­das pelo show”, com a reação variando entre “o elogio histérico à raiva histérica”. Contudo, a lenda do pânico nacional não se sustenta.

Segundo ele, a versão inflaciona­da estabelece­u-se pela combinação do sensaciona­lismo da imprensa com o frenético boca-a-boca dos ouvintes durante a transmissã­o. “Para usar termos do século 21”, diz Schwartz, “a ‘fake news’ viralizou”.

“Este, de várias maneiras, foi o real pânico de ‘Guerra dos Mundos’”, escreve Schwartz: “o medo que a transmissã­o provocou sobre o poder da mídia na sociedade americana”. Basta atualizar “mídia” por “internet” para compreende­r a longevidad­e das lições da provocação radiofônic­a de Dia das Bruxas de Orson Welles.

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William Mur

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