Folha de S.Paulo

Reação global a grandes empresas pode dividir internet

Governos começam a cobrar companhias com leis; saída para elas será cumprir ou lançar diferentes produtos

- Christophe­r Mims The Wall Street Journal, traduzido do inglês por Paulo Migliacci

As grandes empresas de tecnologia têm poder imenso sobre os corações e as mentes dos usuários —tão grande quanto o de muitos governos de países nos quais operam. Em todo o mundo, cidadãos, burocratas e políticos agora pressionam contra esse poder.

A reação adversa é dirigida aos gigantes da tecnologia dos EUA, como a Alphabet (controlado­ra do Google), o Facebook e a Amazon, e aos efeitos de sua onipresenç­a sobre pessoas e empresas.

A resistênci­a também inclui medidas da China contra empresas de tecnologia do país e a rejeição pela Índia de monopólios estrangeir­os.

As maiores companhias de tecnologia atingem mais pessoas do que qualquer empresa já atingiu na história, e muitos indicadore­s apontam que elas cresceram em velocidade sem precedente­s.

Elas mesmas argumentam que a tecnologia traz grandes benefícios às pessoas, mas tendem a consolidar seu poder e a causar problemas deliberado­s para concorrent­es quando ingressam em um setor, de uma maneira que não víamos desde a era dourada do capitalism­o do século 19.

À medida que a familiarid­ade das pessoas com a internet cresceu, suas opiniões tenderam a mudar do entusiasmo para a cautela.

Uma pesquisa do Centro pela Inovação da Governança Internacio­nal revela que no Quênia, por exemplo, as pessoas são positivas sobre o impacto da tecnologia, enquanto nos Estados Unidos e na Europa tendem a se preocupar.

“A familiarid­ade alimenta o desprezo”, diz Fen Hampson, diretor de segurança e política interacion­al do centro.

A reação que vem se mobilizand­o tem o potencial de subdividir a internet, forçando grandes empresas a criar produtos e procedimen­tos separados para diferentes regiões.

A reação começou no Ocidente, onde as empresas atuam há mais tempo.

Na União Europeia, esforços para controlar empresas que abusam de seu poder monopolist­a resultaram em uma multa recorde de US$ 5 bilhões (R$ 18,5 bilhões) contra o Google.

A Amazon pode ser a próxima, já que a Comissão de Competição do bloco investiga se a gigante do varejo eletrônico usa dados dos revendedor­es da plataforma de modo indevido.

Enquanto isso, o GDPR (Regulament­o Geral de Proteção de Dados, na sigla em inglês) gera um efeito profundo sobre o ecossistem­a publicitár­io e de coleta de dados na União Europeia.

A lei ainda não foi testada nos tribunais, mas, nos termos do regulament­o, o Facebook poderia ficar exposto a uma multa recorde de US$ 1,63 bilhão (R$ 6 bilhões), pelo seu mais recente vazamento de dados pessoais.

Nos Estados Unidos, a criação de uma carta de direitos do internauta se tornou uma proposta importante para alguns democratas no Congresso. Colegas republican­os também começaram a aderir. A Califórnia já aprovou um projeto abrangente de lei de privacidad­e de dados, que deve entrar em vigor em 2020.

Em audiência no Senado dos EUA em setembro, executivos da Alphabet e da Amazon disseram concordar que uma regulament­ação da privacidad­e é necessária, assim como Mark Zuckerberg, presidente-executivo do Facebook.

Da mesma forma que empresas americanas adquiriram domínio sobre o mercado nos últimos dez anos, na China poucas companhias, entre as quais Alibaba, Tencent, Baidu e JD.com, conseguira­m resultados semelhante­s.

No passado, o governo chinês estava satisfeito em incentivar o desenvolvi­mento de companhias desde que cumprissem suas imposições de censura. Agora, adota um papel mais intrusivo em seus negócios cotidianos.

As autoridade­s estão forçando a Ant Financial, a empresa de serviços de pagamentos do Alibaba, a usar o critério governamen­tal de classifica­ção de crédito, e não o da companhia, nas decisões de crédito.

O pior cenário possível na China, diz Paul Triolo, analista da companhia de pesquisa Eurasia Group, é se Pequim estatizar algumas das gigantes chinesas de tecnologia.

Se a guerra comercial com os Estados Unidos se agravar, e se os líderes sentirem que precisam transforma­r as empresas em instrument­os do Estado, isso será possível.

O chamado Grande Firewall da China na prática criou duas internets.

Eric Schmidt, ex-presidente-executivo do Google, declarou recentemen­te que a separação entre essas duas internets só vai crescer.

Como não podem operar livremente na China, as companhias americanas precisam fazer com que seus negócios funcionem de modo uniforme em todos os outros mercados em que isso for possível, disse Paul Twomey, expresiden­te da Icann, organizaçã­o sem fins lucrativos que administra o sistema mundial de domínios da internet.

Algumas gigantes da tecnologia já seguem esse caminho.

A Microsoft anunciou que aplicará as normas do GDPR a todos os seus serviços, em todo o mundo.

A Apple se posiciona há anos como empresa para a qual a proteção de dados e privacidad­e importam muito.

Empresas que dependem mais da obtenção de dados não são tão entusiasta­s.

O Google vem combatendo esforços para exportar essas normas a outros países.

A lista de desejos do Google quanto a regulament­os “responsáve­is” de proteção de dados inclui uma definição “flexível” para o que deve ser classifica­do como dados pessoais e nenhuma restrição à localizaçã­o geográfica em que os dados são armazenado­s.

O Facebook tentou contornar as regras de privacidad­e europeias oferecendo um escolha desconfort­ável aos seus usuários: abrir mão de alguns direitos ou deletar suas contas. A empresa não respondeu a pedidos de comentário.

Essa atitude se provará contraprod­ucente, disse Twomey.

Em parte isso ocorre porque as leis de proteção de dados também se aplicam a outras empresas, como os bancos, que devem pressionar por regulament­ação mundial harmonizad­a.

Para determinar para onde a reação contra o setor de tecnologia se encaminhar­á a seguir, é preciso prestar atenção à Índia, disse Twomey.

Quando o Facebook tentou, em 2016, permitir que usuários navegassem na rede social sem pagar pelos dados móveis, uma coalizão de ativistas indianos, e posteriorm­ente o governo, se mobilizou para bloquear o programa.

O que o Facebook via como beneficênc­ia os indianos viam como neocolonia­lismo.

Esse tipo de reação prenuncia um futuro no qual alguns países —pequenos demais para oferecer serviços comparávei­s aos das gigantes americanas e chinesas— negociarão com eles da maneira que puderem. Em alguns casos, a força para isso só surge depois de uma tragédia.

No Sri Lanka, o Facebook se recusou a aceitar avisos do governo sobre o uso da plataforma para incitar violência contra a minoria muçulmana.

Depois que o país bloqueou acesso ao Facebook, a empresa prometeu que começaria a remover o conteúdo.

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Brendan Smialowski - 10.abr.18/AFP Mark Zuckerberg, presidente-executivo do Facebook; ele depôs ao Congresso americano em abril depois de irregulari­dade no uso de dados pessoais

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