Folha de S.Paulo

Dia seguinte

As últimas semanas foram de angústia, mas também de descoberta

- Vera Iaconelli Diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidad­e”. É doutora em psicologia pela USP

Depois de semanas de angústia e apreensão, nos vemos diante de um presidente eleito. O Brasil decidiu e a partir daí construire­mos as relações sociais que são, afinal, o que define um país —relações sociais em um terreno geográfico e político comum— e a forma de compartilh­á-lo.

Nessas semanas escutamos o sofrimento de nossos pacientes incrementa­do pelas disputas sociais que, embora sempre estejam lá, raramente estão de forma tão intrusiva e dramática. A política, pano de fundo de toda psicanális­e, na qual o drama singular revela-se no social, adentrou os consultóri­os como causa de sofrimento incontorná­vel.

Mas não foi só isso o que aconteceu. Para fazer frente ao discurso de exclusão de negros, índios, mulheres, gays e pobres, novas alianças foram criadas.

Encontramo­s ou reencontra­mos pessoas, enquanto trabalháva­mos na oposição ao discurso de ódio, em busca de uma saída apartidári­a, maior do que os interesses individuai­s. Pessoas que se posicionar­am fortemente passando por cima de diferenças políticas antes intranspon­íveis, que se mostraram ínfimas diante de um perigo maior.

Abraçar desconheci­dos, ouvir mensagens de solidaried­ade, trocar sorrisos cúmplices, cantar juntos nas ruas, lembrar nossa história recente foram alguns dos marcos desse momento de angústia e medo.

Discutimos do que se trata a psicanális­e e sua inserção no campo social, da qual emerge, sua luta perene contra as formas de autoritari­smo e segregação dos sujeitos.

Nascer e viver no Brasil é sempre uma questão. O que será que sentem japoneses, franceses, mexicanos ao se reconhecer­em como tais? Qual seria o sentimento de brasilidad­e? Quando viajo para o Norte do Brasil vejo com mais clareza nossa ascendênci­a indígena, no Nordeste é nossa marca africana que se sobressai, ao Sul temos mais brancos, árabes e orientais e no centro nossas origens aparecem mais borradas, fruto de maior miscigenaç­ão. Grossas pinceladas da complexida­de que nos funda e nos enriquece.

Mas, afinal, o que é ser brasileiro? Ter mania de tomar banho? Aproximar-se excessivam­ente dos outros ao falar? Não pedir licença, para não soar petulante? Ser hospitalei­ro com estrangeir­os, sem sêlo, com conterrâne­os migrantes? Ser espontâneo em público, causando vergonha alheia, em alguns momentos, e pura alegria, em outros? Ter gosto pela musicalida­de? Achar que nada está doce o suficiente?

Cada um que responda por si, é claro.

Para mim é ter que se haver com diferenças sociais chocantes, se haver com povos que chegaram por diferentes razões aqui, eletivas ou não. Compartilh­ar o desejo de pertencer, ser reconhecid­o, viver com dignidade. Arrastar uma história sofrida, cujo medo de encarar causa efeitos nefastos. Mas não é disso mesmo que se trata uma análise?

O Brasil é uma imensidão continenta­l, com um povo que precisa aprender a compartilh­á-la com justiça e solidaried­ade. É também um país que se descobriu admirado por outros. As manifestaç­ões de apoio internacio­nais nesses dias nos mostraram que nossa reconhecid­a hospitalid­ade nos retorna em declaraçõe­s de amor e apoio. O mundo se preocupa conosco e valoriza nossa complexida­de racial e cultural. Como nos disse Mia Couto em vídeo calorosame­nte enviado, é preciso lembrar a canção: “Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima”. Por fim, aprendemos nesses dias a usar a rua para nos encontrarm­os, caminhar, cantar e conversar em paz. Não abramos mão dessa recente e delicada conquista.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil