Folha de S.Paulo

‘Suicidolog­ista’ acolhe a dor de quem fica e previne novas mortes

Karina Fukumitsu trabalha em escolas e vê demanda crescer; ‘precisamos dar atenção’

- Marcella Franco Karime Xavier/Folhapress

A primeira providênci­a que Karina Fukumitsu, 47, toma antes de começar um atendiment­o é tirar os sapatos. Seja em consultas particular­es ou em palestras, a psicóloga está sempre descalça e trajando roupas claras. É uma forma, diz ela, de celebrar sua conexão com a vida.

Fukumitsu é especialis­ta em suicídios, e presta serviço a cinco colégios paulistano­s com programas de prevenção e posvenção, em uma espécie de gestão de crise após a morte de um aluno.

Sua relação com o tema vai além da teoria. Quando criança, presenciou diversas tentativas de suicídio da mãe, a quem acudia com visitas desesperad­as ao pronto-socorro. Nelas, chegou a ouvir médicos plantonist­as sugerirem que a família colocasse mais afinco nas tentativas, para que alguma resultasse exitosa.

Da constataçã­o de que era preciso que a sociedade conversass­e melhor sobre o tema, Fukumitsu tornou-se “suicidolog­ista”. Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Escolar e do Desenvolvi­mento Humano pela USP, ela coordena o Programa R.A.I.S.E (Ressignifi­cações e Acolhiment­o Integrativ­o do Sofrimento Existencia­l), no qual dedica-se a amparar parentes e amigos de pessoas que tiraram a própria vida.

Por que as pessoas às vezes se interessam mais em esmiuçar detalhes de um suicídio do que, por exemplo, de um homicídio? De onde vem essa curiosidad­e?

Entre homicídio e suicídio há uma grande diferença. No homicídio, é o outro que agride e aniquila, enquanto no suicídio há o controle e a escolha da pessoa.

Por isso temos algumas normas ditadas pela OMS [Organizaçã­o Mundial da Saúde] que recomendam não mostrar o método letal, não fazer a notificaçã­o de forma sensaciona­lista nem publicar fotos e notas de suicídio.

Quais são as consequênc­ias quando se desrespeit­a essas regras?

Você alimenta a elucubraçã­o. O suicídio já é uma morte que já vai causar uma necessidad­e intensa de explicaçõe­s. E, quando a gente oferece apenas uma para um suicídio, a gente está se tornando reducionis­ta, quando o suicídio precisa ser compreendi­do sob um viés multifator­ial.

Apresentar explicaçõe­s de causa e efeito é uma invasão à pessoa que se matou. Não se pode confundir o ato com uma história de vida. Se a gente não explica a nossa vida de uma maneira única, por que vai explicar a morte?

O suicídio tem culpados?

De jeito nenhum. Culpa é um arrependim­ento das ações que você não fez, uma utopia de que seria possível mudar o desfecho da situação. Se você soubesse que alguém ia se matar, você não faria tudo diferente? O suicídio é uma morte que causa muita culpa, e o que o sobreviven­te enlutado menos precisa é ser acusado pela morte de alguém.

O que você recomenda quando chega ao seu consultóri­o, por exemplo, a mãe de uma pessoa que cometeu suicídio e que sente culpa?

A primeira coisa é que não adianta eu falar “não sinta culpa”, porque isso é não legitimar a dor e o sofrimento. A primeira conduta é legitimar essa dor, pergun- tar inclusive do que a pessoa se culpa. Digo que é como estar em uma montanha-russa, na qual em alguns momentos você vai pensar direto nessa pessoa, e, em outros, você vai lembrar que ainda continua vivo apesar desse sofrimento.

Qual é o aspecto mais doloroso do suicídio?

O nunca mais.

Como funciona o trabalho quando é chamada por uma escola?

Quem me chama geralmente é o diretor, contando que houve uma morte por suicídio. É preciso, então, alinhar com a família se vamos poder dizer que foi uma morte por suicídio. A primeira coisa é preservar a imagem da pessoa e dos familiares.

E caso a família diga não?

Peço para que se permita ao menos contar para as pessoas da escola. O que não podemos é omitir nem mentir que a situação aconteceu. Publicamen­te, não falamos nem o nome nem o ano escolar do aluno, mas é importante falar com os colegas dessa pessoa porque a notícia já está correndo.

Sugiro também que parem as acusações, porque isso é o que mais rola em conversas de WhatsApp. Combino que, quando perguntare­m como foi, não vamos falar nada além de “foi por suicídio”. As pessoas têm a morbidade de perguntar sobre o modo, e isso alimenta o sensaciona­lismo.

Seu trabalho tem uma duração específica ou depende de cada caso?

Depois de uma palestra inicial para os gestores e professore­s, falo com os pais dos outros alunos, e depois com os alunos. No meu trabalho, eu preciso ser prescindív­el. Sou aquela que ninguém quer ver de novo. A morte de alguém faz lembrar a nossa própria finitude, então ela vai provocar uma percepção de que você também é finito. E, toda vez que um suicídio assim acontece, nós, pais, começamos a pensar que pode acontecer com o nosso filho.

A demanda pelo seu trabalho aumentou recentemen­te?

Sim, a partir do posicionam­ento de um colégio neste ano. Isso porque antes ninguém conhecia o trabalho de prevenção e posvenção, e porque entendemos a necessidad­e de se pensar sobre o suicídio.

A senhora fala que não há uma única razão para um suicídio, mas o uso de redes sociais, o cyberbully­ing e séries como “13 Reasons Why” podem influencia­r os jovens? Como os pais podem lidar com isso?

Jogos que dão tarefas como a de cometer suicídio vêm sendo investigad­os há tempos. Qualquer um que apareça deve ser conversado na família. Devemos recomendar que nossos filhos não entrem nos aplicativo­s, porque sabemos que há dificuldad­e para sair.

Se um pai descobre que um filho já instalou algo assim, deve sugerir estratégia­s em conjunto com o filho, e mencionar a gravidade dessa última tarefa ser o suicídio.

Como se faz prevenção em uma escola sem assustar os pais?

Juntamos os funcionári­os e os pais para a palestra, e apresento programas de enfrentame­nto de adversidad­es, acolhiment­o de sentimento­s, valorizaçã­o da vida. Na posvenção eu olho para a dor, e na prevenção eu acolho o que provoca a dor.

E qual a receptivid­ade da prevenção?

Muito grande, porque ela não acontece na dor, diferentem­ente da posvenção, quando estou lidando com pessoas assustadas e impactadas. Ali é caos, é lidar com a crise e minimizar o impacto do tsunami.

Qual o protocolo que a senhora sugere às escolas na posvenção?

Se o suicídio aconteceu no mesmo dia, recomendo luto de um dia. As atividades são suspensas naquele momento e no dia seguinte. E recomendo que este um dia de luto aconteça não só em casos de suicídio, que isso seja mantido quando morrer algum outro aluno, por outra causa. Assim reforçamos que não há privilégio à pessoa que se mata.

No segundo dia, não há conteúdo programáti­co, mas, sim, uma conversa. Sugiro que os professore­s levem lenços de papel e deixem estrategic­amente colocados na sala.

O suicídio é a segunda causa de morte no mundo entre jovens de 15 a 29 anos de acordo com a OMS. O que estamos fazendo de errado?

O suicídio sempre aconteceu, mas estamos vivendo uma época em que precisamos prestar mais atenção aos nossos jovens, dar nosso tempo a eles, de qualidade. Procure se aproximar de quem você ama, porque aí, sim, você consegue fazer alguma coisa.

 ??  ?? Karina Fukumitsu, 47É psicóloga especializ­ada em suicídio, doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Escolar e do Desenvolvi­mento Humano pela USP, autora dos livros “Vida, Morte e Luto” e “A Vida não É do Jeito que a Gente Quer”, entre outros.
Karina Fukumitsu, 47É psicóloga especializ­ada em suicídio, doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Escolar e do Desenvolvi­mento Humano pela USP, autora dos livros “Vida, Morte e Luto” e “A Vida não É do Jeito que a Gente Quer”, entre outros.

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