O aperto dos vagões lotados é o mesmo dos personagens
Quando leio um roteiro para filmar, procuro, antes de tudo, saber se aquele projeto exprime questões humanistas.
Recordo-me que, quando da primeira leitura do roteiro de “Central”, compreendi tratarse de um filme sobre a descoberta do afeto. Me encantei.
Mergulhei no projeto com Waltinho Salles para encontrar os caminhos que me levassem a construção da imagem cromática do filme.
Passei a frequentar a Central do Brasil de câmera em punho, documentando o universo da arquitetura e da imensa população —verdadeiro mar de gente que desembarca dos trens todas as manhãs e sua volta frenética no fim do dia para casa depois do trabalho.
Durante o período de conceituação, observei que, de dia, a luz natural espargia pelas frestas do teto alto uma insuficiente e tímida luminosidade. À noite, as luminárias sem lâmpadas mal iluminavam os espaços entre barracas, quiosques e os acessos às sombrias plataformas de embarque.
Foi desse convívio que encontrei o viés para construção da luz do filme. Passei a trabalhar no ambiente sem interferir e de maneira quase invisível, com pequenos refletores escondidos atrás de colunas e portas.
Aos poucos, fomos entendendo que o aperto dos vagões superlotados, de seus acessos e dos cubículos das casas, nos levou a apertar o quadro usando lentes mais fechadas, como se todos estivessem espremidos em seus próprios mundos.
Quando Dora se aproxima de Josué e os dois avançam em direção ao centro do Brasil, as lentes generosamente vão abrindo ângulos como se a abrangência panorâmica dessas lentes abrisse também o coração dos personagens.
A câmera sem enfeite, sem filtros de efeitos e sem nenhum verniz para embelezar a imagem agora enquadra a paisagem árida do sertão nordestino. A paisagem agora é ampla e o limite e o horizonte, é o Brasil profundo. “Central do Brasil” é um filme necessário.