Folha de S.Paulo

O aperto dos vagões lotados é o mesmo dos personagen­s

- Walter Carvalho Diretor de fotografia do filme

Quando leio um roteiro para filmar, procuro, antes de tudo, saber se aquele projeto exprime questões humanistas.

Recordo-me que, quando da primeira leitura do roteiro de “Central”, compreendi tratarse de um filme sobre a descoberta do afeto. Me encantei.

Mergulhei no projeto com Waltinho Salles para encontrar os caminhos que me levassem a construção da imagem cromática do filme.

Passei a frequentar a Central do Brasil de câmera em punho, documentan­do o universo da arquitetur­a e da imensa população —verdadeiro mar de gente que desembarca dos trens todas as manhãs e sua volta frenética no fim do dia para casa depois do trabalho.

Durante o período de conceituaç­ão, observei que, de dia, a luz natural espargia pelas frestas do teto alto uma insuficien­te e tímida luminosida­de. À noite, as luminárias sem lâmpadas mal iluminavam os espaços entre barracas, quiosques e os acessos às sombrias plataforma­s de embarque.

Foi desse convívio que encontrei o viés para construção da luz do filme. Passei a trabalhar no ambiente sem interferir e de maneira quase invisível, com pequenos refletores escondidos atrás de colunas e portas.

Aos poucos, fomos entendendo que o aperto dos vagões superlotad­os, de seus acessos e dos cubículos das casas, nos levou a apertar o quadro usando lentes mais fechadas, como se todos estivessem espremidos em seus próprios mundos.

Quando Dora se aproxima de Josué e os dois avançam em direção ao centro do Brasil, as lentes generosame­nte vão abrindo ângulos como se a abrangênci­a panorâmica dessas lentes abrisse também o coração dos personagen­s.

A câmera sem enfeite, sem filtros de efeitos e sem nenhum verniz para embelezar a imagem agora enquadra a paisagem árida do sertão nordestino. A paisagem agora é ampla e o limite e o horizonte, é o Brasil profundo. “Central do Brasil” é um filme necessário.

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