Folha de S.Paulo

Função da imprensa é a crítica que beira a irresponsa­bilidade

Deve-se permitir ousadia quase irresponsá­vel

- Marcos Lisboa

Em 1960, o jornal The New York Times publicou anúncio solicitand­o apoio financeiro para a defesa de Martin Luther King no Alabama, onde era processado pelo seu combate à segregação racial. O anúncio continha erros, como o número de vezes em que Dr. King fora preso até então. L. B. Sullivan, comissário da polícia da capital do Alabama, entrou com ação judicial por difamação e ganhou nas cortes locais. O jornal foi multado em US$ 500 mil.

O caso foi parar na Suprema Corte americana. Por 9 a 0, a corte deu ganho de causa ao New York Times e revolucion­ou o direito à liberdade de expressão nos Estados Unidos.

A decisão da corte consolidou a jurisprudê­ncia de que os servidores públicos só podem processar a imprensa se provarem que houve erro intenciona­l ou que não se tentou averiguar a veracidade da reportagem. Caso contrário, mesmo notícias erradas não são passíveis de punição.

O direito à liberdade de expressão protege a sociedade contra possíveis abusos do poder público, que tem a seu dispor os instrument­os de pressão do Estado. Pelo bem da democracia, melhor que pessoas bem-intenciona­das possam errar publicamen­te. E o ônus da prova sobre a sua falta de boa-fé cabe a quem acusa.

Anos depois, em 1969, o jovem economista Daniel Ellsberg, que trabalhava para o governo, resolveu divulgar documentos sigilosos que revelavam os imensos equívocos dos Estados Unidos na guerra do Vietnã. Para agravar, revelavam que o governo havia mentido para a população sobre a extensão do conflito.

Ellsberg copiou milhares de páginas de um exaustivo relatório sobre o histórico da guerra encomendad­o pelo então secretário de Defesa, Robert McNamara. No começo de 1971, Ellsberg foi convencido de que apenas o New York Times teria o prestígio para publicar os documentos e desafiar o governo.

Após a publicação da segunda reportagem sobre os documentos, o governo conseguiu uma liminar para censurar o jornal alegando que poderia haver informaçõe­s que beneficias­sem o inimigo.

Ellsberg distribuiu os documentos para outros jornais, começando pelo diário The Washington Post, que publicou novos trechos do documento apesar das ameaças do governo.

A disputa legal foi parar na Suprema Corte. A corte decidiu que a censura era o pior inimigo. Cabia ao governo demonstrar os riscos iminentes da divulgação dos documentos. Não conseguiu.

O papel da imprensa é duvidar e buscar contradiçõ­es. Sua função em uma democracia é a crítica que pode costear a irresponsa­bilidade.

Reportagen­s muitas vezes são escritas com base em fontes protegidas pelo sigilo; elas, afinal, podem temer retaliaçõe­s. Espera-se que os editores tenham o bom senso de saber se são confiáveis, afinal reputações estão em jogo.

Pois bem, quem define o limite da responsabi­lidade é o próprio jornal, que somente pode ser punido caso seja demonstrad­a malícia intenciona­l. Apenas a sociedade deve determinar se um jornal erra em demasia. A saída é fácil. Basta trocar de jornal.

Qualquer alternativ­a é pior. Vale lembrar que do outro lado está o Estado com todo o seu poder.

Preocupa quando um novo presidente afirma que vai discrimina­r um jornal pelas suas reportagen­s críticas. Cabe à sociedade livre, não ao poder constituíd­o, decidir se um jornal merece ser lido.

Deve-se permitir a ousadia quase irresponsá­vel da imprensa. Por outro lado, espera-se autoconten­ção do poder eleito. Ambas são essenciais para a democracia.

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