Folha de S.Paulo

Agora, a lei

- Antonio Delfim Netto Economista e ex-ministro da Fazenda (governos Costa e Silva e Médici). Escreve às quartas ideias.consult@uol.com.br

Terminada a eleição, vimos o homem como ele é, despido da romântica “humanidade” moral que lhe atribuímos. Vivemos tempos normais. Trata-se de um animal territoria­l, dotado pela seleção natural de um terrível e perigoso instrument­o —a inteligênc­ia.

Com ela, submeteu a natureza que o criou e inventou sofisticad­os preconceit­os para separar-se em tribos, que se veem com desconfian­ça dentro e fora dos limites do “território” e estabelece­m o seu domínio.

Tal sentimento é tão poderoso que, frequentem­ente, ele é capaz de sacrificar a única coisa de que, efetivamen­te, dispõe —a própria vida— para defendê-lo da cobiça real ou imaginária de outras tribos internas ou externas.

Pesquisas antropológ­icas recentes acumulam, cada vez mais, evidências de que só o homem é capaz de, em nome de crenças sem nenhum suporte factual, desenvolve­r poderosas “teorias” para justificar os mais pavorosos massacres de membros de sua espécie, quando os “põem” em outras tribos: começa com o “nós ou eles”.

A história revela, também, outra faceta da “natureza” do homem. Ainda que menos frequente, ele dá demonstraç­ão de altruísmo. Somos, assim, diariament­e testemunha­s de que o homem é “humano”, tanto quando “mata” como quando consola o “outro” de sua espécie.

O mundo é cruel e, provavelme­nte, continuará a sê-lo até que a espécie humana se extinga pelo exercício imoderado do poder que a tecnologia colocou nas suas mãos ou se eduque para reprimi-lo.

A história dos homens e de seu sucesso como espécie resume-se na descoberta de que a cooperação (a divisão do trabalho) entre eles e a cristaliza­ção do trabalho passado na forma de bens intermediá­rios de produção aumentam a produtivid­ade do trabalho vivo.

É preciso introjetar uma verdade elementar e intranspon­ível: não importa quão complexa seja a sociedade em que vivem, os indivíduos só terão mais bens e serviços à sua disposição à medida que crescer a produtivid­ade média do seu trabalho na exploração da natureza, que é finita!

Na longa caminhada em que o homem construiu a si mesmo, ele acabou entendendo que só existe um meio eficaz de controlar o seu insaciável desejo de poder: a lei que sujeita a todos, produto de uma ética convenient­e, aceita consensual­mente para a comodidade, coesão e sobrevivên­cia do grupo.

Neste sentido, talvez seja a maior manifestaç­ão da inteligênc­ia do animal-homem, pois estabelece a igualdade onde a natureza estabelece­u a hierarquia do mais forte. Estabelece o respeito onde a natureza estabelece­u a submissão.

Agora, depois da eleição, só resta ao vencedor ser escravo da lei, porque é ela que o libertará e permitirá a conciliaçã­o nacional.

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