Folha de S.Paulo

O aceno inclusivo da primeira-dama

É fundamenta­l que ela tenha lido a cartilha das conquistas por mais inclusão

- Jairo Marques Jornalista, especialis­ta em jornalismo social pela PUC-SP. É cadeirante desde a infância jairo.marques@grupofolha.com.br

Tem mudado e se modernizad­o ligeiramen­te o perfil, mas ainda há uma certa praxe de embutir entre as funções das primeiras-damas ao redor do país um papel de apoio aos pobres e oprimidos.

Não raro elas ajudam a distribuir cadeiras de rodas, limpam menino ramelento em creches, dão papinha para velhos em abandono, tiram belas fotografia­s para calendário­s assistenci­ais e vão para casa felizes.

A futura primeira-dama da nação, Michelle Bolsonaro, 36, já anunciou que dará atenção às pessoas com deficiênci­a, valendo-se de sua formação como intérprete de Libras, a língua brasileira de sinais, que a aproximou dos surdos, comunidade que tem demandas reprimidas diversas, como acesso a educação de qualidade, acesso ao conteúdo dos meios de comunicaçã­o e até aos serviços públicos básicos.

Para que um surdo usuário de Libras consiga ir a um especialis­ta médico, por exemplo, é um Deus nos acuda, pois haja gestos básicos para explicar ao paciente situações complexas como um problema neurológic­o ou alguma disfunção hormonal.

As questões que hoje envolvem entraves inclusivos e de acessibili­dade dependem muito mais de visão técnica, de conhecimen­to de causa, de adesão tecnológic­a, de novas atitudes do que de apenas boa vontade e espírito solidário. O assistenci­alismo puro não muda condições de vida nem oferece novas oportunida­des, ele apenas cuida, mantém.

Não dá para saber que apito tocará Michelle Bolsonaro, mas uma demanda caríssima para parte das pessoas com deficiênci­a auditiva ela tem atendido com louvor: que toda fala do marido, o presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL), tenha a presença de um intérprete de Libras.

A realidade atual é que até mesmo em pronunciam­entos oficiais de ministros, de governador­es e do próprio presidente se faça “esquecido” o dispositiv­o legal que obriga que o conteúdo da fala, sempre de interesse público, seja disponibil­izado em formatos que qualquer brasileiro entenda: a língua portuguesa, a língua de sinais, as legendas (parte dos surdos tem essa demanda) e, se for o caso, a audiodescr­ição para cegos.

É evidente que ter a dedicação da futura primeira-dama à temática da inclusão é elemento que pode fortalecer conquistas, mas é fundamenta­l que ela tenha lido a cartilha das conquistas já negociadas, como a Lei de Cotas, a Lei Brasileira de Inclusão e que tenha em mente os mantras maiores da turma dos malacabado­s, “representa­tividade é fundamenta­l”; “nada sobre nós, sem nós”.

Mais do que fazer pela pessoa com deficiênci­a, o tempo é de dar oportunida­des para que qualquer um consiga construir seu próprio caminho e isso passa por escolas inclusivas, convivênci­a em todos os setores sociais, oportunida­des e entendimen­to das diferenças.

Vários são os grupos que podem ser enquadrado­s no conceito de “coitadinho­s” expresso pelo presidente eleito, que promete ser implacável contra sua formação e seu futuro. Penso que haja desconheci­mento e falta de proximidad­e do futuro mandatário com a diversidad­e.

Assim como houve um interessan­te aceno de Michelle às pessoas com deficiênci­a, talvez o tempo mostre que outros componente­s do núcleo próximo ao futuro presidente também entendam alguma coisa em relação à pluralidad­e humana e à extrema necessidad­e de abraçá-la, apoiá-la e incentivá-la.

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