Folha de S.Paulo

Filme ‘Roma’ é uma demonstraç­ão da sensibilid­ade e do caráter de Cuarón

Devagar entramos no longa em preto e branco para conhecer um México muito parecido com o Brasil

- Inácio Araujo Divulgação

É aos poucos que “Roma” seduz o espectador. Talvez a razão de botar o pé atrás seja o preto e branco contemporâ­neo, sem contrastes, sem matizes, como uma única mancha cinzenta que toma o quadro.

Devagar entramos no filme, conhecemos um México muito parecido com o Brasil. Estamos numa casa de classe média alta, onde as duas empregadas fazem tudo e ainda ouvem críticas da patroa. Não importa, são tratadas como pessoas da família, sobretudo Cleo. Depois, vamos à mansarda ocupada pelas duas empregadas. É ali que elas se queixam uma à outra das patroas.

Não é preciso muito tempo também para notarmos que o preto e branco é justificad­o pela época. Estamos nos anos 1970, presumivel­mente no início, na época daqueles carrões que engoliam toneladas de gasolina por quilômetro. É assim o carro do “doutor”.

Aceitemos a ausência de cores em nome da época, ainda que nesse momento os filmes já fossem todos coloridos. O essencial é a percepção bastante segura dos gestos do cotidiano, inclusive da maneira como se desenvolve­m os jogos infantis e as rivalidade­s entre irmãos.

Importa ainda que a viagem de estudos do doutor ao Canadá não é bem uma viagem nem de estudos nem ao Canadá —ele está deixando a casa, e essa viagem é apenas a história que Sofia deve contar aos filhos. Quase ao mesmo tempo, Cleo vai engravidar de um rapaz que, ato contínuo, cai fora.

Não é trama o que mais nos interessa, mas os olhares das personagen­s. Sofia, assim como seus filhos, observa o mundo com atenção, de maneira ativa (ainda que a mudança do marido seja dolorosa).

Cleo, ao contrário, tem um olhar vazio, passivo, de quem não tem a esperar do mundo senão aquilo que o mundo quiser lhe dar.

Uma vez abandonada pelo marido, Sofia parece bem mais disposta a compreende­r os problemas de Cleo. E esses serão agravados pela tremenda repressão das forças armadas ao movimento dos estudantes. O certo é que as duas mulheres estarão mais próximas —os problemas da femi- nilidade as aproximam mais do que as diferenças de classe as afasta uma da outra.

Uma sequência se sobressai: aquela em que quase acontece um afogamento (e do qual convém não dar detalhes). Nesse ponto, assim como o roteiro fornece os elementos de suspense, a direção de Cuarón conduz com felicidade a trama.

É talvez esse o ponto que mais interessa no filme: a maneira como ele nos traz a esse lugar tão pouco conhecido das pessoas do Terceiro Mundo —o Terceiro Mundo. Não apenas o mundo do subdesenvo­lvimento material, mas, ainda mais, o mental.

Por sinal, seria o caso de perguntar o que significa Roma, o nome do filme. Poderia ser, parece, esse espaço quase não mencionado pelo filme: a Roma contemporâ­nea, os populares Estados Unidos.

Para um cineasta de talento, que até ganhou um Oscar com uma grande produção de Hollywood (“Gravidade”, de 2013), “Roma” é uma demonstraç­ão de sensibilid­ade a problemas que afligem, e muito, o seu país. Além de uma demonstraç­ão de caráter. Claro.

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Cena do filme ‘Roma’, vencedor do Leão de Ouro em Veneza, com exibição nesta noite na Mostra de SP, no Auditório Ibirapuera

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