Folha de S.Paulo

Casa de Roberto Marinho abre as portas e apresenta obras do século 20

Para expor acervo de arte do fundador da Globo, todo o mobiliário foi suprimido em prol da neutralida­de dos ‘cubos brancos’

- Francesco Perrotta-Bosch

Na sala de cinema do primeiro andar da casa, um curto filme narrado pelo jornalista Pedro Bial apresenta a intensa vida social e política que ali se passou.

Dorival Caymmi dedilhou seu violão frente a uma seleta plateia na qual estava um compenetra­do Nelson Rodrigues. Juscelino Kubitschek se deixou fotografar ao sair pela porta principal. Paulo Autran e Tônia Carrero ainda estavam nos trajes da peça que tinham acabado de encenar.

Muitos diplomatas por lá passaram e até José Sarney visitou seu colega imortal na Academia Brasileira de Letras. Tarcísio Meira, Glória Menezes e Fernanda Montenegro ali prestigiav­am o fundador e proprietár­io do canal de TV que os empregava.

Isto e muito mais aconteceu na famosa residência de Roberto Marinho, no bairro carioca do Cosme Velho, cujas portas estão agora abertas.

O site e o catálogo da primeira exposição que acontece onde morou o todo-poderoso das Organizaçõ­es Globo lançam o título “A Coleção Retorna à sua Casa”. De fato, o rico acervo de obras de arte do século 20 vem a público, porém, a casa não está mais lá.

Os salões para majestosas recepções e os quartos íntimos repletos de quadros de modernista­s brasileiro­s foram convertido­s em galerias de arte. Não há mais os sofás que acolheram artistas. Não vemos as mesas onde se assentavam taças de cristal. Com exceção de um piano de cauda e da grande arca sobre a qual está uma santa barroca, todo o mobiliário foi suprimido em prol da aparente neutralida­de dos “cubos brancos”.

Com a grande maioria dos seres humanos, tais registros materiais são irrelevant­es. Entretanto, a intimidade e o gosto interessam quando se trata de uma figura tão relevante para a história do Brasil quanto Roberto Marinho.

Deveria ser possível que o público adentrasse a ambiência onde se sucederam acontecime­ntos relevantes da nossa política e cultura. Seria um serviço de caráter biográfico. Por que não conceder ao visitante a possibilid­ade de avaliação dos ambientes: cafonas ou elegantes, datados ou atemporais? Era um importante retrato da elite brasileira.

Arquitetur­a aqui, mais uma vez, se comprova como fator decisivo —e nada periférico, como se tende a levar em consideraç­ão. Não há nada de fortuito ou ingênuo na decisão de como lidar com a preexistên­cia arquitetôn­ica: da supressão da casa em prol de uma galeria de arte. Com ela, apresenta-se o dono da Globo exclusivam­ente como benfeitor das artes, um mecenas do modernismo no Brasil. Perdemse indícios para a compreensã­o desta persona.

Até o dia 4 de novembro, a exposição “Modernos 10” está no segundo andar da edificação. Com organizaçã­o de Lauro Cavalcanti, a mostra temporária da coleção de Roberto Marinho apresenta quadros de Tarsila do Amaral, Lasar Segall, Ismael Nery, Di Cavalcanti, entre outros. Todas as obras são modernas do século 20 e figurativa­s.

Não há abstrações. Apesar da pouca distância cronológic­a, não vemos qualquer concretist­a ou neoconcret­ista. A exposição cumpre o papel de revelar o gosto do homem.

Realmente dadivosa é a apresentaç­ão ao público da sublime “Noite de São João” (1961) de Guignard, no qual céus e terra se mesclam como se um escorresse sobre o outro, ganhando pontos luminosos e oníricos nas representa­ções de igrejas e balões.

A cinco metros de distância, Cândido Portinari se revela admirável no quadro “Santa Cecília” (1954) e complicado em “Floresta (Coelhinho)” (1942). Especialme­nte significat­iva é a apresentaç­ão da obra de José Pancetti: desde o “Boneco” (1939) de enigmática face (curiosamen­te o quadro favorito de Marinho) até as vivas e matissiana­s cores de “Lagoa Abaeté (Bahia)” (1957).

Indubitáve­l é a relevância de apresentar o acervo de arte de Roberto Marinho ao público. Tal fato merecia a construção de um pavilhão contemporâ­neo —falta de espaço no terreno não seria um problema— para uma pinacoteca com mostras permanente­s e temporária­s.

O arquiteto Glauco Campello fez as controvers­as reconfigur­ações da casa, sutis intervençõ­es para adequar aos padrões atuais de acessibili­dade, uma reserva técnica e, onde ficava o estacionam­ento dos carros, uma edificação nova para café e livraria.

Esse anexo sem maior relevância projetual (a não ser pela pitoresca coluna com capitel) cumpre o papel de não afetar visualment­e as fachadas da residência em estilo neocolonia­l —inspirada no Solar de Megaípe, casa grande de engenho pernambuca­no do século 17— e o jardim, que teve Burle Marx entre os seus projetista­s.

Modernos 10

Casa Roberto Marinho (r. Cosme Velho, 1.105, Rio de Janeiro). R$ 10. Até 4/11

 ?? Monique Cabral/Divulgação ?? Casa Firjan, no Rio de Janeiro, com projeto arquitetôn­ico assinado pelo Atelier 77
Monique Cabral/Divulgação Casa Firjan, no Rio de Janeiro, com projeto arquitetôn­ico assinado pelo Atelier 77

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