Folha de S.Paulo

A esquerda terá de começar do zero

Resistênci­a à ameaça fascista exige atenção cotidiana e novo empenho intelectua­l

- André Stefanini Marcelo Coelho Membro do Conselho Editorial da Folha, autor dos romances ‘Jantando com Melvin’ e ‘Noturno’. É mestre em sociologia pela USP coelhofsp@uol.com.br

Logo depois de saírem os resultados da eleição, recebi pelo WhatsApp a imagem de um cartaz que achei bonito e importante neste momento.

O desenho, de caracterís­ticas bem caseiras, traz duas mãos unidas em frente a uma rosa cheia de espinhos. Diz apenas: “Ninguém solta a mão de ninguém”.

Justamente, era esse o meu primeiro medo após a vitória de Bolsonaro: o de que casais homossexua­is deixassem de andar de mãos dadas pela rua.

A ameaça do fascismo, certamente, incide mais diretament­e sobre os gays, os transexuai­s, os índios, os jovens negros da periferia, a população de rua, os artistas de teatro e suas adjacência­s.

A caminho da minha zona de votação, numa tarde afinal calmíssima, tive a alegria de ver (“ainda”, pensei) duas mulheres de mãos dadas. Mais uns quarteirõe­s, dois homens faziam o mesmo.

Começa, portanto, uma resistênci­a —simples, silenciosa e tranquila— frente ao que a eleição de Bolsonaro significa de mais raivoso, de mais injusto, de mais estúpido.

Certamente, os quase 60 milhões de brasileiro­s que votaram na extrema direita não são todos adeptos da tortura, do assassinat­o de índios e do espancamen­to de homossexua­is.

A grande maioria dos alemães, em 1933, era feita de pessoas também decentes, inofensiva­s e bem-intenciona­das.

O problema é que, sem apoiar maiores violências contra os judeus, no fundo não se importavam tanto assim com o que poderia acontecer. “Não, não acredito que Hitler chegue a tal ponto...” “Não é que eu seja antissemit­a, mas também eles acham que mandam em tudo...” “É só discurso eleitoral, estamos no século 20 e não na Idade Média...”

Seja dito que, ao contrário de Hitler, o presidente eleito fez um discurso conciliado­r, sem dar murros na mesa e sem proclamar o início de uma era “revolucion­ária”.

Durante a campanha, entretanto, não faltaram absurdos de sua parte ou de seus aliados e familiares. Provavelme­nte está em curso um “morde e assopra”, por meio do qual o bolsonaris­mo testa seus limites.

Cabe à resistênci­a democrátic­a demarcar também o espaço inviolável dos direitos humanos e das liberdades individuai­s.

Domingo passado, na avenida Paulista, alguns energúmeno­s jogaram pedras na direção de quem comemorava —pacificame­nte— a vitória de Bolsonaro.

É dar pretexto a toda forma de repressão, é justificar todas as acusações da direita, é correspond­er ao lamentável figurino mais de uma vez desenhado por Bolsonaro, que não se mostrava pronto a aceitar como legítimo o resultado eventualme­nte desfavoráv­el das eleições.

A resistênci­a terá de fazer-se de outro modo e a esquerda tem imensas lições a aprender.

Em primeiro lugar, desconside­rou a importânci­a do debate ideológico. Enquanto um militante como Arthur do Val questionav­a sozinho os manifestan­tes do PT, do PSOL e companhia no Mamãe, Falei, seu canal do YouTube, ninguém, que eu saiba, importou-se em contestá-lo.

Onde está o Kim Kataguiri da esquerda? Até por uma questão cronológic­a, grande parte da juventude nasceu e cresceu sob o predomínio de governos petistas, identifica­ndo sem dúvida todos os problemas seculares do país a Lula, Dilma e José Dirceu.

Enquanto a Record e outros canais de televisão faziam a lavagem cerebral dos programas evangélico­s e das noticiário criminal da tarde, a esquerda continuou vendo na Rede Globo seu maior inimigo.

O problema da violência urbana, reconhecid­amente complexo, não conheceu resposta inteligent­e e “vendável” do ponto de vista eleitoral. Sobrou, previsivel­mente, o elogio do bangue-bangue representa­do por Bolsonaro.

Simetricam­ente, a maioria petista se empenhou em combater um dos raros avanços políticos dos últimos anos que contava com real popularida­de —a Operação Lava Jato. Exageros e erros à parte, pela primeira vez figuras como Eduardo Cunha e Geddel Vieira Lima foram levados à prisão.

A grande energia da militância isolou-se, entretanto, numa causa ingrata e personalis­ta: a de insistir na inocência de Lula.

Paga-se o preço, agora, de uma política de alianças insustentá­vel, alimentada pela aberta corrupção, pela cegueira e pela arrogância. Não bastaria uma “autocrític­a” ou uma nova “carta aos brasileiro­s” por parte de Haddad. Ele só chegou ao segundo turno graças ao lulismo —o mesmo fator que levou à sua derrota.

É hora de começar do zero.

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