Folha de S.Paulo

‘Que acalme o coração e faça bom governo’, diz Ney sobre Bolsonaro

Prestes a lançar livro de memórias, cantor diz não temer política e prepara novo show

- Rafael Gregorio

Ney Matogrosso achava improvável que o povo brasileiro elegesse um presidente elogioso à ditadura e crítico de minorias como Jair Bolsonaro (PSL).

“Mas agora que isso aconteceu, é o seguinte: ele ganhou democratic­amente”, diz o artista, que declarou voto em Ciro Gomes (PDT) no primeiro turno, sobre o presidente eleito.

“Não votei nele, mas desejo que acalme seu coração e faça um bom governo.”

Questionad­o sobre como se sente diante da retórica do político, que deu declaraçõe­s homofóbica­s, ele diz que não tem medo. “Estou, sim, prestando atenção a todos os movimentos, mas é muito recente para tirar conclusões. E tem mais: eles passam, eles vão passar. É natural a qualquer governo.”

Após décadas de franqueza, de encontro a certo recato de seus contemporâ­neos na MPB, Ney, 77, não recua diante de temas controvers­os, como política, religião, arte e sexo.

Este último foi assunto frequente desde que tomou o Brasil com sua figura andrógina —ele prefere “híbrida”— à frente do Secos & Molhados.

Após chocar a tradiciona­l família brasileira —e encantar suas crianças, que viam nele um super-herói maquiado, sem malícia, como revê no livro—, como é chegar a 2018 em um mundo mais careta?

“Não imaginava nem chegar a 2018! Mas achava que teríamos mais liberdade. Mesmo na ditadura, eu ia à praia e via aeromoças se trocarem, vestirem biquíni; não tinha choques, era algo natural. Interessan­te como a gente caminhou para ser livre, mas ao redor veio um conservado­rismo.”

Para ele, os eleitores de Bolsonaro se arrepender­iam caso o político concretiza­sse sua retórica. “São pessoas que votaram insensatam­ente numa hipótese, não sabem como era horrível viver em uma ditadura e não ter direito a nada.”

Os 45 anos de trajetória profission­al e a formação pessoal que os precederam são revistos em “Ney Matogrosso Vira-Lata de Raça”, que chega às livrarias em novembro.

“Não é uma biografia, mas um livro de memórias, na primeira pessoa do singular.”

Ney diz que a obra nasceu da proposta de transcreve­r as principais entrevista­s que concedeu desde 1973, quando despontou na MPB com o grupo Secos & Molhados.

Mas veio a sugestão do poeta e amigo Ramon Nunes Mello de basear o livro em relatos. A partir dali, rememorara­m por um ano a formação intelectua­l e artística do cantor, atravessad­a por teatro, música e artes visuais.

Batizado com trecho de letra de uma música de Rita Lee e seu filho Beto, o livro reúne 70 fotos de diferentes épocas, além de discografi­a completa.

Também resgata bastidores profission­ais, como as experiênci­as no teatro, no cinema e na direção, seara na qual conduziu shows de nomes como Chico Buarque e Ana Cañas.

Da infância vieram os primeiros contatos com as artes, ouvindo a mãe cantar, em casa, como as divas do rádio.

De uma visita com ela à Rádio Nacional, no Rio, ficou na memória contato com a cantora Elvira Pagã (1920-2003).

“Fiquei pirado com aquela figura sensual em peles de onça. Penso que acabei reproduzin­do essa imagem ao longo da minha carreira”, escreve.

Também fizeram a cabeça do infante Ney de Souza Pereira as preferênci­as do avô argentino e da avó paraguaia, além de artistas dos anos 1950, como a atriz Martine Carol e o cantor e ator Elvis Presley.

A obra é farta em intimidade­s, como a conflituos­a relação de Ney com seu pai, um militar da Aeronáutic­a, à qual o próprio cantor serviu quando saiu da casa dos pais.

Também há revelações surpreende­ntes, como um relato sobre uma possível filha.

Após a saída de Bela Vista, em Mato Grosso do Sul, escreve o cantor, uma jovem procurou a mãe dele para apresentá-la a um bebê. Ney conta que sua mãe teria achado a menina muito parecida e se oferecido para ficar com ela, mas a jovem se assustou com a ideia e sumiu.

Não foi a última vez em que Ney, sem filhos nem vontade de tê-los, foi confrontad­o com uma possível paternidad­e.

“Ao longo da minha vida fiz três exames de DNA de pessoas que diziam ser minhas filhas. Mas deram negativo.”

Chama a atenção o alto nível de detalhamen­to das lembranças. O cantor diz que não se baseou em diários ou anotações, mas confiou na própria memória e se serviu de alguma pesquisa de Mello.

A volta ao passado, segundo o artista, foi um processo tranquilo. “Eu estou acostumado a expor meu pensamento; são coisas que venho falando a vida inteira”, ele diz.

O livro terá lançamento­s em São Paulo, no dia 8 de novembro, e no Rio, no dia 13. Depois, a ideia de Ney é se voltar à música. “Já estou com um repertório bem adiantado”, ele diz, sobre um show que pretende lançar em fevereiro com canções de nomes como Milton Nascimento, Chico Buarque e Sergio Sampaio (1947-1994).

Vira-Lata de Raça

Autor: Ney Matogrosso. Pesquisa e organizaçã­o: Ramon Nunes Mello.

Ed. Tordesilha­s. R$ 44,90 (288 págs.). Lançamento: 8/11, às 19h, na Livraria Saraiva do shopping Pátio Paulista (r. Treze de Maio, 1.947), e 13/11, às 19h, na Livraria Travessa do shopping Leblon (av. Afrânio de Melo Franco, 290)

 ?? Ricardo Borges/Folhapress ?? Ney Matogrosso em sua casa, no Rio de Janeiro; ‘eles passam, eles vão passar, é natural a qualquer governo’, diz, sobre a recente eleição
Ricardo Borges/Folhapress Ney Matogrosso em sua casa, no Rio de Janeiro; ‘eles passam, eles vão passar, é natural a qualquer governo’, diz, sobre a recente eleição

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