Folha de S.Paulo

Túmulos de anônimos em SP têm devoção e reverência

Cemitérios atraem devotos de santos populares supostamen­te milagreiro­s; pesquisado­r prepara livro sobre o tema

- Fabrício Lobel

Há 18 anos, Rosemere Alencar, hoje com 42 anos, estava grávida e recebeu a notícia de que a sua primeira filha não vingaria. Os médicos tiveram que retirar a criança ainda em formação de seu ventre e disseram que ela não sobreviver­ia por muitos dias.

Rosemere, que então trabalhava havia um ano como jardineira no cemitério da Vila Alpina, resolveu apelar à crença popular que se criou diante do túmulo de 13 vítimas não reconhecid­as do incêndio do edifício Joelma, ocorrido em 1974 no centro de São Paulo.

Dizia a tradição que pedidos feitos àquelas vítimas eram realizados. Seja por intervençã­o transcende­ntal ou pelo sucesso da medicina (ou uma mistura de ambos, como acredita Rosemere), a filha da jardineira, Luzia, sobreviveu e hoje cursa arquitetur­a.

“Desde então, eu prometi que cuidaria dos túmulos das 13 almas do Joelma todos os domingos. Nunca falhei”, diz ela, ao lado dos túmulos cheios de faixas e placas de mármore em agradecime­nto a graças realizadas.

No local, todos os dias, pessoas acendem velas e deixam faixas e flores em agradecime­nto. Há também quem, próximo aos túmulos, derrame um pouco de água (numa simbólica tentativa de aplacar as dores de queimadura das vítimas) ou um pouco de leite (para amenizar intoxicaçõ­es).

O culto às almas no Brasil tem forte origem católica, desde os tempos coloniais, mas com o tempo se misturou também com devoções espíritas e de religiões de origem africana, que cultuam a ancestrali­dade.

Segundo o pesquisado­r Fábio Mariano Borges, professor da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing), os túmulos das 13 vítimas do Joelma, no cemitério Vila Alpina, é apenas um dos muitos pontos de cemitérios paulistano­s que atraem devotos de santos populares supostamen­te milagreiro­s. Ele prepara um livro com os relatos dessas manifestaç­ões religiosas.

“Grande parte dos casos é de túmulos de pessoas simples, desconheci­das, mas que por alguma razão sua morte foi revestida de mistério. Nem sempre se sabe pelos registros históricos a real história desses personagen­s, mas a fé popular se responsabi­liza por criar suas próprias narrativas. Assim, o mistério alimenta as histórias de milagres realizados”, explica.

No caso dessas vítimas do Joelma, o mistério reside na identidade até hoje incerta —a tragédia no edifício deixou quase 200 mortos.

Já no cemitério da Consolação, a morte misteriosa de Maria Judith de Barros também atraiu devotos.

Conta-se que a mulher, muito pobre, morreu de tanto apanhar do marido. A história não é confirmada em registros oficiais. Seja como for, ao longo dos anos, seu túmulo simples virou destino de pessoas que pediam soluções a problemas de relacionam­ento e compra da casa própria, por exemplo.

Mas a maior especialid­ade de Maria Judith seria a de ajudar estudantes no vestibular. Nas mais de 200 placas fixadas em seu túmulo, estão agradecime­ntos de novos universitá­rios, por exemplo, nos cursos de engenharia, na USP, e de odontologi­a, na Unesp.

Beatriz Tamamoto, 21, mandou fixar uma das placas de agradecime­nto depois de entrar em medicina veterinári­a na Universida­de Federal do Paraná, em 2017. “Eu soube da história da Maria Judith por uma professora. Eu já tinha prestado vestibular uma vez e não consegui passar. Achei que não faria mal pedir ajuda [à santa popular] e deu certo.”

Na última segunda-feira (29), a que antecede o Enem (o exame nacional que serve de entrada para diversas universida­des), cinco vestibulan- dos passeavam pelo cemitério da Consolação. O grupo estava mais interessad­o nas personalid­ades históricas sepultadas ali, como a Marquesa de Santos, Mário de Andrade e Luís Gama.

Mesmo sem acreditar muito nos poderes de Maria Judith, um dos estudantes, Nathan Bertagna, 18, que vai prestar vestibular para física, levou os amigos até o túmulo da milagreira. “Eu já tinha ouvido falar que as pessoas vem aqui e agradecem, se passam no vestibular. Não sei se dá sorte, acho que é mais um incentivo pessoal para que o próprio estudante se dedique mais”.

A alguns metros, outro ponto de devoção é o túmulo do menino Antoninho da Rocha Marmo, talvez um dos milagreiro­s mais famosos da cidade. Em 1947, uma reportagem da Folha da Noite (jornal que era editado pelo Grupo Folha) já tratava Antoninho como um santinho consagrado pelos paulistano­s. O garoto, que era muito religioso, morreu num surto de gripe espanhola em 1930, aos 12 anos.

Sobre o túmulo de granito preto, está uma estátua em tamanho natural de um menino com uma bíblia na mão. Atrás da estátua, uma parede com uma imagem de Cristo e uma cruz.

Todo o túmulo e a cruz são cobertas de pequenas placas de agradecime­ntos a pedidos alcançados: o fim do vício pelo cigarro, a cura de um familiar e uma nova carreira como aeromoça, entre outras.

Sobre o túmulo há ainda muitas flores, que são constantem­ente trocadas por visitantes. O Dia de Finados e o Dia das Crianças são os mais movimentad­os diante do túmulo de Antoninho.

Essas duas datas também são as mais movimentad­as no túmulo da menina Débora, no cemitério da Vila Formosa. A criança de 5 anos, que teria sido vítima de um crime bárbaro, em 1983, tem uma quadra inteira reservada só para ela, no bastante cheio cemitério da zona leste da capital.

O Serviço Funerário de São Paulo lista ainda outros túmulos supostamen­te milagreiro­s pela cidade. Entre eles o de um morador de rua, sepultado no cemitério de Santo Amaro, e o do menino Guga, no cemitério do Araçá.

Fábio Borges cita ainda santos populares em cemitérios de Brasília, Recife, São Leopoldo (RS), além das paulistas Araraquara e Bauru. “É um fenômeno muito comum no Brasil e uma tradição que vai se perpetuar. Somos um país que, infelizmen­te, não faltam tragédias, o que deve continuar alimentand­o esse tipo de manifestaç­ão de fé”, comenta Borges.

 ?? Karime Xavier/Folhapress ?? Rosemere Alencar, 42, acende vela em capela para as vítimas do Joelma
Karime Xavier/Folhapress Rosemere Alencar, 42, acende vela em capela para as vítimas do Joelma
 ?? Fabrício Lobel/Folhapress ?? Túmulo do menino Antoninho Marmo, no Cemitério da Consolação
Fabrício Lobel/Folhapress Túmulo do menino Antoninho Marmo, no Cemitério da Consolação

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