Folha de S.Paulo

Claro como o Sol

Já estamos a léguas fora do que seria até mesmo uma democracia liberal

- Vladimir Safatle Professor de filosofia da USP, autor de ‘O Circuito dos Afetos: Corpos Políticos, Desamparo e o Fim do Indivíduo’

Há uma diferença estrutural entre cinismo e hipocrisia.

A hipocrisia é uma operação de mascaramen­to de intenções. Ela é a utilização de proposiçõe­s socialment­e compreendi­das como corretas para mascarar interesses inconfessá­veis. Nesse sentido, ela precisa impedir que as reais intenções sejam enunciadas. Há uma contradiçã­o que deve ser escondida e continuame­nte negada.

Nesses casos, quando você expõe as reais intenções do enunciador, a hipocrisia é desvelada e as proposiçõe­s entram em colapso. Foi assim que a democracia liberal funcionou até hoje.

Já o cinismo é uma operação de desvelamen­to das reais intenções na qual a contradiçã­o, mesmo sendo exposta, não produz nenhum efeito. Expor as contradiçõ­es de nada adianta, pois as palavras estão lá para serem ignoradas. Nesses casos, todo regime autoritári­o tem traços cínicos.

Imagine, por exemplo, um recém-eleito à Presidênci­a da República que diga algo como: “Sou totalmente a favor da liberdade de imprensa, mas há a questão da propaganda oficial do governo, que é outra coisa”. Ou seja, ele afirma claramente que se serviria das verbas oficiais para pressionar setores da imprensa a publicar o que convém e deixaria de publicar o que o incomoda.

Pode-se dizer que isso sempre foi feito, mas algo muda radicalmen­te quando uma prática desempenha­da em silêncio é claramente exposta. Fazer às claras significa que o poder não poderá mais ser questionad­o em seus interesses e privilégio­s.

O mesmo acontece quando um juiz mobiliza o país inteiro para a prisão do candidato mais popular de uma eleição, vaza informaçõe­s de forma deliberada para influencia­r resultados da campanha e, ao final, recebe do candidato vencedor —aquele que, por coincidênc­ia, foi o mais beneficiad­o por suas intervençõ­es— um cargo de destaque em seu governo.

Ao final, ele poderá dizer que estará lá para dar continuida­de a sua incansável luta contra a corrupção, sendo que a pior de todas as corrupções já foi feita por ele mesmo.

A corrupção que consiste em usar a Justiça para beneficiar explicitam­ente candidatos que a subjetivid­ade do juiz entende como “não corruptos”, mesmo que notícias mostrem o contrário.

Um processo de benefício pessoal tão corriqueir­o, mas agora feito de uma forma tão explícita, apenas blinda o poder para, mais uma vez, não ser questionad­o em seus usos interessad­os do poder da Justiça.

Mas podemos ainda pensar em outro caso de cinismo nacional. Imaginem um país laico cujo novo presidente, assim que eleito, grita versículos da Bíblia e coloca o país diante de um macabro ritual de orações, em um desrespeit­o explícito às cidadãs e aos cidadãos que não comungam com sua fé e que nunca aceitariam ser submetidos por um poder que transforma suas liturgias em tentativa de justificaç­ão teológica de sua existência.

Como se fosse o caso de vender a ideia “estou aqui porque Deus quis”. E qual o nome daqueles que se opõem aos desígnios de Deus para o povo brasileiro? Opositores ou infiéis a serem abatidos na próxima cruzada?

Boa parte dos governos ocidentais, a despeito de sua laicidade, servem-se do horizonte teológico para fundamenta­r o poder —eis algo que não impression­a ninguém.

Mas, à parte em um Estado teocrático (como o Brasil parece querer entrar), essa mobilizaçã­o nunca é feita de forma explícita, com versículos repetidos na boca dos ocupantes do poder e orações em cadeia nacional.

Tudo isso demonstra como já estamos diante de um poder que acredita ser capaz de ignorar toda resistênci­a contra sua soberania, que se vende como uma máquina que concentra uma força sem limites cujo verdadeiro objetivo é sua própria perpetuaçã­o.

Nós já estamos a léguas fora do que seria até mesmo uma democracia liberal, o que dizer de uma democracia efetiva de soberania popular.

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Marcelo Cipis

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