Folha de S.Paulo

Resistir a eleito é negar os eleitores

Presidente repete padrão adotado na campanha eleitoral; para especialis­tas, estratégia destoa de antecessor­es

- Marina Merlo, Guilherme Garcia e Fábio Takahashi

Quem, em nome do espantalho do “fascismo”, desceu às trincheira­s da “resistênci­a” ignora o significad­o da democracia.

As primeiras falas públicas do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) priorizara­m ataques ao PT e tópicos relacionad­os à segurança pública, indica levantamen­to da Folha.

Esses e outros dos temas mais abordados pelo capitão reformado repetem discursos feitos durante a campanha presidenci­al.

Três especialis­tas em discurso político consultado­s pela reportagem afirmam que essa repetição não é usual para um presidente eleito.

Tradiciona­lmente, dizem eles, o vitorioso começa a detalhar as medidas do governo nessas primeiras declaraçõe­s e não segue atacando em larga escala os adversário­s.

A Folha analisou o pronunciam­ento feito por Bolsonaro via rede social logo após ter sido eleito, assim como as primeiras entrevista­s concedidas às TVs Record, Bandeirant­es e Globo, além de conversa com outros jornalista­s ainda no domingo (28).

Modelo estatístic­o apontou os assuntos mais presentes nessa uma hora e meia de declaraçõe­s, que resultaram em 13,8 mil palavras analisadas.

Críticas ao PT e à esquerda foram os temas mais presentes, com 14% das menções. Bolsonaro sugeriu, por exemplo, que poderia prender as cúpulas do PT e do PSOL.

Disse ainda que o programa Mais Médicos, do governo Dilma Rousseff (PT), foi feito “para atender à ditadura cubana”.

Ataque a rivais foi também o tema mais presente na campanha de Bolsonaro, apontou o GPS Eleitoral, ferramenta da Folha que monitorou as estratégia­s dos candidatos.

“Bolsonaro se comportou mais como candidato do que como presidente eleito nessas primeiras declaraçõe­s”, disse Luiz Farias, professor da Escola de Comunicaçõ­es e Artes da USP, que pesquisa opinião pública.

“Ele seguiu confrontan­do os adversário­s já vencidos, o que é incomum”, declarou.

Para comparação, a repor- tagem analisou também o discurso da vitória e as primeiras entrevista­s da então presidente reeleita Dilma Rousseff (PT), em 2014.

Ataques ao rival Aécio Neves ou ao seu partido, o PSDB, não apareceram nem entre os 11 tópicos mais presentes nos discursos dela.

Os assuntos mais mencionado­s nas falas de Dilma foram apoio a investigaç­ões de corrupção, necessidad­e de dialogar com o Congresso Nacional e a defesa da reforma política.

“O mais comum é que o presidente, quando eleito, priorize o detalhamen­to de como vai governar. Como não fez isso, Bolsonaro parece não ter um plano muito definido”, afirmou a professora de política Vera Chaia, da PUC-SP.

Chaia diz que os primeiros passos para se entender o que será o governo Bolsonaro apareceram apenas quando começaram a ser divulgadas ao longo da semana as fusões de ministério­s e nomes de ministros confirmado­s, como Sergio Moro (Justiça), anunciado na última quinta-feira (1º).

Alinhado com o anúncio da chegada do juiz ao futuro governo, o presidente eleito fez da segurança o terceiro assunto mais presente em suas primeiras falas.

Sobressaír­am nas declaraçõe­s de Jair Bolsonaro a intenção de dar retaguarda a policiais, até para “abater” criminosos; de diminuir a maioridade penal; e de facilitar o porte de armas para a população.

Segurança foi o tema prioritári­o no início da campanha de Bolsonaro, mas que per- deu espaço ao longo da disputa para críticas à esquerda.

A prioridade sobre o tema da segurança parece atender a um anseio da população.

Pesquisa Datafolha com eleitores, publicada em setembro, apontou a violência como o maior problema do país, ao lado da saúde.

Ao analisar os dados levantados pela Folha, o professor da ESPM Luiz Peres Neto, doutor em ciências da comunicaçã­o e que pesquisa o populismo, diz que chamam a atenção as menções de Bolsonaro à religião.

“Nenhum outro presidente brasileiro deu tanta ênfase a Deus em suas primeiras declaraçõe­s”, afirmou.

Antes do discurso da vitória, feito via uma rede social, o presidente eleito apareceu no vídeo em oração ao lado de aliados.

Segundo o modelo estatístic­o usado pela Folha, assuntos relacionad­os à religião ocuparam 7% das menções do capitão reformado em suas falas iniciais. Para Dilma Rousseff, o tema nem apareceu na contagem.

“Ele parece muito à vontade quando fala de religião e de ataques ao PT”, disse o professor da ESPM.

“E fica desconfort­ável quando precisa falar de assuntos relacionad­os a medidas e planos de governo, como direitos trabalhist­as. Ele não é claro no que pretender fazer”, declara o especialis­ta.

Menções a composição ministeria­l e reforma econômicas apareceram como segundo assunto mais mencionado pelo presidente eleito.

Mas Bolsonaro deu poucos detalhes do que pretendia fazer, preferindo enfatizar que tudo ainda estava em discussão.

Uma diferença entre os discursos iniciais de Bolsonaro e de Dilma é que o capitão reformado, apesar dos ataques ao PT, também ressaltou a necessidad­e de unificar o país.

Essas menções representa­ram 6% do total; para Dilma, por outro lado, acenos aos adversário­s tiveram tão pouco destaque que nem apareceram na contagem do modelo estatístic­o.

“Bolsonaro se comportou mais como candidato do que como presidente eleito nessas primeiras declaraçõe­s Luiz Farias professor da Escola de Comunicaçõ­es e Artes da USP

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